|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Micro/Macro
Gravitação e quanta, um casamento complicado
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Durante as três primeiras décadas do
século 20, a física e, consequentemente, a visão de mundo moderna passaram por uma profunda revisão. Duas
novas teorias, a teoria da relatividade e a
teoria quântica, reformularam a concepção da estrutura do espaço e do tempo,
assim como a do mundo dos átomos e
das partículas subatômicas. Enquanto a
teoria da relatividade geral, elaborada
por Albert Einstein, mostrou que a atração gravitacional entre dois (ou mais)
corpos pode ser interpretada como devida à curvatura do espaço em torno dos
corpos, a teoria quântica mostrou que,
no mundo dos átomos, processos físicos
como a troca de energia entre átomos e
radiação ocorrem descontinuamente.
Ambas as teorias causaram uma ruptura com a chamada visão de mundo
clássica, segundo a qual a atração gravitacional era interpretada como uma força agindo à distância entre corpos maciços, e os processos do mundo atômico
não eram particularmente distintos dos
processos ocorrendo à nossa volta. A física passou a revelar um mundo onde a intuição simplesmente não funciona.
Com o desenvolvimento da tecnologia
dedicada ao estudo dos átomos e das
partículas subatômicas, como o elétron e
o próton, ficou claro que a física do mundo submicroscópico é regida por três
forças fundamentais: o eletromagnetismo, que trata da atração e da repulsão
das cargas elétricas e da sua relação íntima com o magnetismo, e as forças nucleares forte e fraca que, como já diz o
nome, atuam apenas dentro do núcleo
atômico, ou seja, a distâncias menores
do que um trilionésimo de centímetro.
Claramente, nós não temos nenhuma
percepção direta das duas forças nucleares. Das quatro forças fundamentais, nós
temos familiaridade apenas com as duas
de longo alcance, a gravidade e o eletromagnetismo.
Uma das características mais fundamentais da teoria quântica é que quantidades físicas como a energia ou o momento de uma partícula (que depende de
sua velocidade) flutuam. Não é possível
afirmar com absoluta precisão que "a
energia desse elétron é tal e o seu momento é tal", como seria possível em física clássica. (Excluindo-se os inevitáveis
erros que ocorrem sempre que fazemos
alguma medida. Por exemplo, ao medirmos uma distância com uma régua, não
temos precisão maior do que a metade
da menor subdivisão da régua.)
Portanto, no mundo do muito pequeno nada pára, tudo está sempre em movimento, numa constante agitação
quântica. Por exemplo, imagine que um
elétron seja uma bola bem pequenina e
que ele tenha sido posto em uma cuia
côncava. Dentro da visão clássica, o elétron iria eventualmente parar no fundo
da cuia, com energia zero. Segundo a física quântica, o elétron irá se aproximar
do fundo da cuia e, em média, sua posição será a mesma da física clássica, mas
ele continuará a flutuar permanentemente em torno do fundo da cuia.
A física quântica, mesmo que bem exótica, é extremamente bem-sucedida:
muito de nossa tecnologia moderna, incluindo lasers, medicina nuclear e todos
os produtos da tecnologia digital, são
consequência dessas flutuações de elétrons e outras partículas. Esse sucesso e a
descoberta das duas forças nucleares
acabaram por criar um desequilíbrio na
física: existem quatro forças, três delas
atuando no mundo subatômico, e uma
delas, a gravitacional, sendo praticamente desprezível no mundo do muito pequeno, mas absolutamente fundamental
nas escalas macroscópicas, de bactérias e
planetas até galáxias e o Universo.
Esse desequilíbrio cria um verdadeiro
dilema: segundo a cosmologia moderna,
o Universo está em expansão. Se voltarmos à sua infância, há 14 bilhões de anos,
o próprio Universo era muito pequeno,
de dimensões comparáveis às partículas
subatômicas. Nesse caso, suas propriedades deveriam ser descritas pelas regras
da teoria quântica. O problema é que a
gravidade, segundo a descrição da relatividade geral, não se adapta facilmente à
essas regras. O casamento entre as duas
teorias é um dos grandes desafios da física moderna. E ainda não foi consumado.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
Texto Anterior: O fim do inverno Próximo Texto: Ciência em Dia - Marcelo Leite: Adeus ao sequenciamento de DNA
Índice
|