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ENTREVISTA DA 2ª
LYGIA DA VEIGA PEREIRA
Pesquisadora quer pressa em 1º teste clínico com células de embrião no país
"Temos de recuperar o tempo perdido, de forma responsável", diz bióloga da USP que criou a primeira linhagem nacional"
Marcelo Rudini/ Folha Imagem
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A bióloga carioca Lygia da Veiga Pereira, da USP, durante simpósio de terapia celular em Curitiba
EDUARDO GERAQUE
ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA
OS DOIS ANOS de busca pela primeira linhagem de células-tronco embrionárias humanas brasileira, a BR-1, apresentada na
semana passada, foram angustiantes para
a carioca Lygia da Veiga Pereira. Aos 41 anos, essa física que acabou migrando para a biologia diz que se sentiu como a proverbial mulher de malandro: "Na pesquisa, a gente apanha 90%, mas nos 10% restantes tudo é muito gratificante". Pereira agora quer sair em
busca do tempo que foi perdido na área no país.
Para ela, o Brasil não pode ficar atrás nos testes clínicos
com as células-tronco embrionárias, as mais promissoras para a cura de doenças degenerativas por sua capacidade de se
transformarem em qualquer
tecido do organismo.
Como a pesquisadora vai distribuir as linhagens celulares
que ela obteve para quem quiser usar, ela acha que não é o caso de vários grupos brasileiros
saírem agora competindo, tentando fazer suas próprias linhagens. "Mas isso não significa
que eu fiz a primeira e não quero que mais ninguém faça."
Leia a seguir entrevista à Folha, dada na semana passada
em Curitiba, durante o 3º Simpósio Internacional de Terapia
Celular, onde foi anunciada a
obtenção da linhagem BR-1.
FOLHA - Suas pesquisas começaram em 2006, antes de a ação de inconstitucionalidade contra a Lei de Biossegurança ter sido votada. Vocês chegaram a burlar a lei?
LYGIA DA VEIGA PEREIRA - Quando
a lei foi aprovada, em 2005, o
Ministério da Saúde e o CNPq
deram R$ 17 milhões para as
pesquisas. Logo em seguida entrou a ação. Mas a lei valia. O
CNPq não só aprovou o nosso
projeto, como liberou a verba.
Para mim isso foi uma sinalização: "Siga em frente".
FOLHA - Como o processo ocorreu,
desde a doação dos embriões?
PEREIRA - Os embriões usados
foram os que sobraram da fertilização in vitro, que os casais,
em total anonimato, doaram
para a pesquisa. Contamos com
uma parceria com duas clínicas, a Fertility, do Dr. Edson
Borges [de São Paulo], e a clínica do Dr. Franco Jr., em Ribeirão Preto. Eles têm centenas de
embriões já doados para a pesquisa. Os embriões são descongelados nas clínicas, mas, como
eles são os piores, por terem sido os que sobraram, dos 250
manipulados apenas 35 chegaram ao estágio que nos interessava. Nas clínicas ainda, o pessoal corta o embrião e retira o
pedaço de onde vão ser separadas as células-tronco embrionárias. Só depois tudo vem para
o nosso laboratório, na USP.
Não sei cultivar embrião, não
adiantava vir antes.
FOLHA - O processo de aprendizado foi contínuo?
PEREIRA - Nós quebramos a cabeça. Foram dois anos de muita
frustração, até três meses atrás.
Nós dissemos que iríamos fazer
e criamos uma expectativa. E
aí, cadê? Foi um alívio tremendo. Nós usamos uma estratégia
de começar essa curva de
aprendizado, para dar um salto
de conhecimento, do zero. Nós
trabalhamos com embriões humanos, que não são uma pessoa, mas são um material muito
nobre, que deve ser tratado
com grande dignidade. Em vez
de sairmos descongelando embriões sem experiência nenhuma, em 2006 nós trouxemos
pesquisadores dos EUA para
ensinar os primeiros passos. A
primeira leva de células não
deu certo, mas demos um salto.
FOLHA - O problema sempre esteve na pesquisa básica?
PEREIRA - É, na transferência
tecnológica. Isso funciona mais
ou menos como uma receita de
bolo. O cara escreve a receita e
o bolo dele tem um gosto. Você
faz na sua cozinha, com as suas
coisas, ele vai ficar um pouco
diferente. Mas nós tivemos
uma oportunidade, por esse
tempo todo de atraso em desenvolver as nossas linhagens,
de ter meios de cultura mais
modernos. Foi isso, neste ano,
que fez a coisa dar certo.
FOLHA - Não há dúvida de que vocês obtiveram linhagens de células-tronco embrionárias e que elas podem ser multiplicadas?
PEREIRA - Não há dúvida. Nós
multiplicamos, congelamos um
pedaço, descongelamos e ela se
multiplicou também. Imagina
que frustrante, depois desse
barulho todo, alguém me pedir
uma dessas células e eu dizer:
"Morreu!" Seria um papelão.
FOLHA - Vocês ainda não publicaram nada em revistas científicas...
PEREIRA - Nós pretendemos publicar. Estabelecer linhagens
de células-tronco embrionárias
não é trivial. Deve haver bem
menos de 50 grupos em todo o
mundo que conseguiram fazer
isso. Nós achamos importante
divulgar isso agora porque o governo federal está fazendo uma
nova aposta na gente. O Ministério da Saúde está investindo
em pesquisa básica, o que é
uma coisa sensacional. A receita do bolo vai estar no artigo.
Vamos disponibilizar essas células, treinar gente. Agora temos o domínio dessa tecnologia, desde tirar a célula de um
embrião humano até fazer um
neurônio em animal.
FOLHA - E quais são os próximos
passos?
PEREIRA - Eu quero aprender a
tirar essa célula do embrião,
multiplicá-la no laboratório de
forma adequada para o uso humano, usando produtos que
não sejam de origem animal
[como foi feito agora]. E quero
também fazer tudo isso em
quantidade. Uma coisa é você
ter células suficientes para cuidar de um camundongo, outra é
ter material suficiente para curar o ser humano. O próximo
passo, portanto, é produzir essas células em grande escala.
FOLHA - O desafio agora é "humanizar" essas linhagens para que a
aplicação delas em testes com humanos fique mais segura?
PEREIRA - Daqui a pouco vão começar os testes clínicos em seres humanos com essas células.
Nós nos acostumamos a só ver
testes clínicos com células-tronco adultas. Mas esse negócio com as embrionárias vai
acontecer. Nos EUA, no ano
que vem, será feito o primeiro
teste para lesões na medula. E
nós aqui no Brasil estamos de
braços cruzados. Temos de recuperar esse tempo perdido.
Eu quero fazer isso de uma forma responsável, mas quero estar lá na frente também.
FOLHA - Esses testes estão muito
próximos também aqui no Brasil?
PEREIRA - Vivemos um momento muito parecido ao do ano de
1967, quando começaram os
transplantes de coração. Não se
sabia se era seguro ou não. Se
funcionava ou não. Era preciso
ter coragem para dar esse passo
do modelo animal para o do ser
humano. No próximo ano, nos
Estados Unidos, veremos esses
experimentos. Se for seguro, isso vai incentivar muitos outros
testes clínicos com outras
doenças. O caso das embrionárias é igual ao caso do coração.
O Brasil está em 1956, quando
começaram os testes em modelos animais. O que eu quero é
trazer o Brasil para 1967.
FOLHA - Quando vocês ficaram seguros do resultado obtido?
PEREIRA - Há dois meses começamos a ficar felizes. As células
grudaram [ao substrato usado
no meio de cultura] e começamos a ver um crescimento que
tinha cara de ser realmente a
coisa. Mas apanhamos muito.
Estávamos com medo de ficarmos felizes. Falava para a minha aluna [Ana Maria Fraga,
que também trabalhou no projeto]: "Não grita ainda". Estava
com a cara, estava crescendo.
Mas temos de ser rigorosos. Foram testes mínimos para identificar determinados marcadores que nós fizemos até a semana passada [retrasada]. Aí eu
disse: "Pode gritar".
FOLHA - Os primeiros testes com
essas células embrionárias devem
ser feitos para quais doenças?
PEREIRA - As embrionárias causam tanto entusiasmo porque
elas, em animais de laboratório,
têm efeito terapêutico muito
importante. Isso em paralisia
por trauma de medula, em
doença de Parkinson, em diabetes. Essas são as únicas células que conseguem fazer insulina. Essas são as doenças, além
da degeneração de mácula, para as quais grupos nos EUA estão desenvolvendo terapias
com células embrionárias.
FOLHA - Quais são os obstáculos ao
avanço da terapia celular no país?
PEREIRA - Um é a questão da importação. Estou no meio de um
experimento e me dou conta de
que eu vou precisar de um reagente qualquer. Ligo para a empresa de importação e ela me
diz que em 30 a 60 dias o material chega! Um experimento
que pode esperar de 30 a 60
dias não precisa ser feito.
A segunda questão é a da fixação de pesquisadores. Não temos como contratar na universidade sem ser por concurso. A
nossa principal mão-de-obra
são os alunos de pós-graduação, que em alguns anos vão
embora. Deveria haver algum
órgão que pudesse fazer uma
contratação de forma mais dinâmica. E, como na iniciativa
privada, isso deveria ser feito
por meritocracia. Não deu certo, é demitido. E não da forma
como é hoje, a pessoa entra,
senta na cadeira e não sai mais.
FOLHA - A sra. já trabalhou em um
banco de cordão umbilical, certo?
PEREIRA - Tenho fascinação pela iniciativa privada por causa
desse negócio da meritocracia.
Realmente eu fui convidada para ajudar a estabelecer o Cordvida há alguns anos, que é um
banco de cordão umbilical. Foi
uma delícia, por causa da agilidade. Hoje ainda sou do conselho científico. Chegou um momento em que eles queriam me
pagar com sociedade, a USP
disse que isso não podia, era
conflito de interesses. Também
comecei a levar pedrada da academia, por preconceito. "Oh!
Que horror, a iniciativa privada!" Mas eu pensava diferente.
FOLHA - A sra. é a favor de guardar
o cordão umbilical de bebês?
PEREIRA - O debate ficou dividido entre o bem e o mal. Tem
gente que diz que isso serve para tudo, e isso é propaganda enganosa. Outros, que não serve
para nada. Isso é falso. Essas células valem para doenças do
sangue, como as leucemias.
Que são raras, mas são graves.
Vale a pena? A única pena, sejamos sinceros, é financeira.
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