São Paulo, segunda-feira, 06 de outubro de 2008

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ENTREVISTA DA 2ª

LYGIA DA VEIGA PEREIRA

Pesquisadora quer pressa em 1º teste clínico com células de embrião no país

"Temos de recuperar o tempo perdido, de forma responsável", diz bióloga da USP que criou a primeira linhagem nacional"

Marcelo Rudini/ Folha Imagem
A bióloga carioca Lygia da Veiga Pereira, da USP, durante simpósio de terapia celular em Curitiba

EDUARDO GERAQUE
ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA

OS DOIS ANOS de busca pela primeira linhagem de células-tronco embrionárias humanas brasileira, a BR-1, apresentada na semana passada, foram angustiantes para a carioca Lygia da Veiga Pereira. Aos 41 anos, essa física que acabou migrando para a biologia diz que se sentiu como a proverbial mulher de malandro: "Na pesquisa, a gente apanha 90%, mas nos 10% restantes tudo é muito gratificante". Pereira agora quer sair em busca do tempo que foi perdido na área no país.

Para ela, o Brasil não pode ficar atrás nos testes clínicos com as células-tronco embrionárias, as mais promissoras para a cura de doenças degenerativas por sua capacidade de se transformarem em qualquer tecido do organismo. Como a pesquisadora vai distribuir as linhagens celulares que ela obteve para quem quiser usar, ela acha que não é o caso de vários grupos brasileiros saírem agora competindo, tentando fazer suas próprias linhagens. "Mas isso não significa que eu fiz a primeira e não quero que mais ninguém faça." Leia a seguir entrevista à Folha, dada na semana passada em Curitiba, durante o 3º Simpósio Internacional de Terapia Celular, onde foi anunciada a obtenção da linhagem BR-1.

 

FOLHA - Suas pesquisas começaram em 2006, antes de a ação de inconstitucionalidade contra a Lei de Biossegurança ter sido votada. Vocês chegaram a burlar a lei?
LYGIA DA VEIGA PEREIRA
- Quando a lei foi aprovada, em 2005, o Ministério da Saúde e o CNPq deram R$ 17 milhões para as pesquisas. Logo em seguida entrou a ação. Mas a lei valia. O CNPq não só aprovou o nosso projeto, como liberou a verba. Para mim isso foi uma sinalização: "Siga em frente".

FOLHA - Como o processo ocorreu, desde a doação dos embriões?
PEREIRA
- Os embriões usados foram os que sobraram da fertilização in vitro, que os casais, em total anonimato, doaram para a pesquisa. Contamos com uma parceria com duas clínicas, a Fertility, do Dr. Edson Borges [de São Paulo], e a clínica do Dr. Franco Jr., em Ribeirão Preto. Eles têm centenas de embriões já doados para a pesquisa. Os embriões são descongelados nas clínicas, mas, como eles são os piores, por terem sido os que sobraram, dos 250 manipulados apenas 35 chegaram ao estágio que nos interessava. Nas clínicas ainda, o pessoal corta o embrião e retira o pedaço de onde vão ser separadas as células-tronco embrionárias. Só depois tudo vem para o nosso laboratório, na USP. Não sei cultivar embrião, não adiantava vir antes.

FOLHA - O processo de aprendizado foi contínuo?
PEREIRA
- Nós quebramos a cabeça. Foram dois anos de muita frustração, até três meses atrás. Nós dissemos que iríamos fazer e criamos uma expectativa. E aí, cadê? Foi um alívio tremendo. Nós usamos uma estratégia de começar essa curva de aprendizado, para dar um salto de conhecimento, do zero. Nós trabalhamos com embriões humanos, que não são uma pessoa, mas são um material muito nobre, que deve ser tratado com grande dignidade. Em vez de sairmos descongelando embriões sem experiência nenhuma, em 2006 nós trouxemos pesquisadores dos EUA para ensinar os primeiros passos. A primeira leva de células não deu certo, mas demos um salto.

FOLHA - O problema sempre esteve na pesquisa básica? PEREIRA - É, na transferência tecnológica. Isso funciona mais ou menos como uma receita de bolo. O cara escreve a receita e o bolo dele tem um gosto. Você faz na sua cozinha, com as suas coisas, ele vai ficar um pouco diferente. Mas nós tivemos uma oportunidade, por esse tempo todo de atraso em desenvolver as nossas linhagens, de ter meios de cultura mais modernos. Foi isso, neste ano, que fez a coisa dar certo.

FOLHA - Não há dúvida de que vocês obtiveram linhagens de células-tronco embrionárias e que elas podem ser multiplicadas?
PEREIRA
- Não há dúvida. Nós multiplicamos, congelamos um pedaço, descongelamos e ela se multiplicou também. Imagina que frustrante, depois desse barulho todo, alguém me pedir uma dessas células e eu dizer: "Morreu!" Seria um papelão.

FOLHA - Vocês ainda não publicaram nada em revistas científicas...
PEREIRA
- Nós pretendemos publicar. Estabelecer linhagens de células-tronco embrionárias não é trivial. Deve haver bem menos de 50 grupos em todo o mundo que conseguiram fazer isso. Nós achamos importante divulgar isso agora porque o governo federal está fazendo uma nova aposta na gente. O Ministério da Saúde está investindo em pesquisa básica, o que é uma coisa sensacional. A receita do bolo vai estar no artigo. Vamos disponibilizar essas células, treinar gente. Agora temos o domínio dessa tecnologia, desde tirar a célula de um embrião humano até fazer um neurônio em animal.

FOLHA - E quais são os próximos passos?
PEREIRA
- Eu quero aprender a tirar essa célula do embrião, multiplicá-la no laboratório de forma adequada para o uso humano, usando produtos que não sejam de origem animal [como foi feito agora]. E quero também fazer tudo isso em quantidade. Uma coisa é você ter células suficientes para cuidar de um camundongo, outra é ter material suficiente para curar o ser humano. O próximo passo, portanto, é produzir essas células em grande escala.

FOLHA - O desafio agora é "humanizar" essas linhagens para que a aplicação delas em testes com humanos fique mais segura?
PEREIRA
- Daqui a pouco vão começar os testes clínicos em seres humanos com essas células. Nós nos acostumamos a só ver testes clínicos com células-tronco adultas. Mas esse negócio com as embrionárias vai acontecer. Nos EUA, no ano que vem, será feito o primeiro teste para lesões na medula. E nós aqui no Brasil estamos de braços cruzados. Temos de recuperar esse tempo perdido. Eu quero fazer isso de uma forma responsável, mas quero estar lá na frente também.

FOLHA - Esses testes estão muito próximos também aqui no Brasil?
PEREIRA
- Vivemos um momento muito parecido ao do ano de 1967, quando começaram os transplantes de coração. Não se sabia se era seguro ou não. Se funcionava ou não. Era preciso ter coragem para dar esse passo do modelo animal para o do ser humano. No próximo ano, nos Estados Unidos, veremos esses experimentos. Se for seguro, isso vai incentivar muitos outros testes clínicos com outras doenças. O caso das embrionárias é igual ao caso do coração. O Brasil está em 1956, quando começaram os testes em modelos animais. O que eu quero é trazer o Brasil para 1967.

FOLHA - Quando vocês ficaram seguros do resultado obtido?
PEREIRA
- Há dois meses começamos a ficar felizes. As células grudaram [ao substrato usado no meio de cultura] e começamos a ver um crescimento que tinha cara de ser realmente a coisa. Mas apanhamos muito. Estávamos com medo de ficarmos felizes. Falava para a minha aluna [Ana Maria Fraga, que também trabalhou no projeto]: "Não grita ainda". Estava com a cara, estava crescendo. Mas temos de ser rigorosos. Foram testes mínimos para identificar determinados marcadores que nós fizemos até a semana passada [retrasada]. Aí eu disse: "Pode gritar".

FOLHA - Os primeiros testes com essas células embrionárias devem ser feitos para quais doenças?
PEREIRA
- As embrionárias causam tanto entusiasmo porque elas, em animais de laboratório, têm efeito terapêutico muito importante. Isso em paralisia por trauma de medula, em doença de Parkinson, em diabetes. Essas são as únicas células que conseguem fazer insulina. Essas são as doenças, além da degeneração de mácula, para as quais grupos nos EUA estão desenvolvendo terapias com células embrionárias.

FOLHA - Quais são os obstáculos ao avanço da terapia celular no país?
PEREIRA
- Um é a questão da importação. Estou no meio de um experimento e me dou conta de que eu vou precisar de um reagente qualquer. Ligo para a empresa de importação e ela me diz que em 30 a 60 dias o material chega! Um experimento que pode esperar de 30 a 60 dias não precisa ser feito. A segunda questão é a da fixação de pesquisadores. Não temos como contratar na universidade sem ser por concurso. A nossa principal mão-de-obra são os alunos de pós-graduação, que em alguns anos vão embora. Deveria haver algum órgão que pudesse fazer uma contratação de forma mais dinâmica. E, como na iniciativa privada, isso deveria ser feito por meritocracia. Não deu certo, é demitido. E não da forma como é hoje, a pessoa entra, senta na cadeira e não sai mais.

FOLHA - A sra. já trabalhou em um banco de cordão umbilical, certo?
PEREIRA
- Tenho fascinação pela iniciativa privada por causa desse negócio da meritocracia. Realmente eu fui convidada para ajudar a estabelecer o Cordvida há alguns anos, que é um banco de cordão umbilical. Foi uma delícia, por causa da agilidade. Hoje ainda sou do conselho científico. Chegou um momento em que eles queriam me pagar com sociedade, a USP disse que isso não podia, era conflito de interesses. Também comecei a levar pedrada da academia, por preconceito. "Oh! Que horror, a iniciativa privada!" Mas eu pensava diferente.

FOLHA - A sra. é a favor de guardar o cordão umbilical de bebês?
PEREIRA
- O debate ficou dividido entre o bem e o mal. Tem gente que diz que isso serve para tudo, e isso é propaganda enganosa. Outros, que não serve para nada. Isso é falso. Essas células valem para doenças do sangue, como as leucemias. Que são raras, mas são graves. Vale a pena? A única pena, sejamos sinceros, é financeira.


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