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ANTROPOLOGIA
Pesquisador dos EUA mede pegadas de crianças de São Paulo para testar teoria de "recapitulação evolutiva"
Pé infantil pode explicar evolução humana
REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Se depender de um bioantropólogo americano que está passando uma temporada na USP, a expressão "teste do pezinho" vai
acabar ganhando um significado
dos mais insuspeitos. Medindo os
pés de centenas de crianças paulistanas, ele quer mostrar que as
modificações neles durante o
crescimento refletem, na verdade,
a longa transformação da humanidade numa espécie bípede.
Os instrumentos de trabalho de
David Webb, 42, não podiam ser
mais prosaicos: um recipiente de
plástico, desses usados para guardar pedaços de bolo na geladeira,
recheado com uma esponja lambuzada de tinta. O "teste do pezinho" é feito com as crianças pisando ali e usando o pé como carimbo numa folha de papel.
"Adoro esse negócio, é muito prático", brinca o pesquisador da
Universidade Kutztown, no Estado americano da Pensilvânia.
Webb está no Brasil desde setembro, trabalhando no Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP ao lado do bioantropólogo Walter Neves. A intenção do pesquisador é usar as medidas das crianças brasileiras para
estudar as famosas pegadas de
Laetoli, na Tanzânia (África
Oriental), que têm 3,6 milhões de
anos de idade e representam um
dos maiores enigmas no estudo
da evolução humana, assim como
outras marcas deixadas pelos pés
dos hominídeos.
Descobertas nos anos 70, as trilhas de Laetoli provavelmente foram feitas quando uma fina camada de cinzas vulcânicas foi
atingida pela chuva, criando algo
parecido com cimento fresco. Um
sem-número de animais caminhou pela área, inclusive uma dupla de criaturas cujas pegadas são
praticamente idênticas às que um
ser humano de hoje deixaria.
Pés de macacos
"Isso é fácil de ver porque os
grandes macacos têm os dedos
dos pés curvados e um dedão que
mais parece um polegar -é como se o pé fosse uma mão", explica Webb. Além disso, o comprimento dos dedos nesses bichos é
bem maior, quando comparado
com o resto do pé, do que nos humanos modernos.
"Nós comparamos moldes dessas pegadas com os de gibões, gorilas e chimpanzés de hoje, e parece que os dedos eram relativamente curtos mesmo", conta o
bioantropólogo. O problema é
que, quando entraram na dança
os fósseis da fêmea "Lucy", um
membro da espécie Australopithecus afarensis à qual, teoricamente, pertenceriam os autores
das pegadas, algo não se encaixou: os dedos do fóssil pareciam
grandes demais para fazer pegadas daquele tipo.
É aí que entram as medidas dos
pés das crianças brasileiras. Para o
pesquisador, a estranha discrepância pode ter a ver com uma característica que parece ser comum nos mais diferentes níveis
do processo evolutivo -algo que
os cientistas costumam sintetizar
com a frase "a ontogenia recapitula a filogenia".
O ditado parece ininteligível,
mas na verdade é bem simples: a
idéia é que o desenvolvimento de
cada indivíduo hoje, da barriga da
mãe à maturidade (a ontogenia),
recapitula vários dos estágios da
evolução daquela espécie (a filogenia). Os seres humanos, por
exemplo, têm fendas branquiais
quando são fetos -assim como o
ancestral aquático do Homo sapiens. "Claro, isso tem limitações.
Você tem fendas branquiais, mas
não brânquias de verdade na fase
fetal", diz Webb.
Se isso vale para a evolução dos
pés, provavelmente os bebês nascem com dedos proporcionalmente maiores, que vão diminuindo até se estabilizar na adolescência. O bioantropólogo e
dois orientandos de Neves na
USP, Danilo Vicensotto Bernardo
e Tiago Hermenegildo, já obtiveram impressões dos pés de 286
crianças e adolescentes de 3 anos
a 14 anos de idade.
Uma das dificuldades do trio,
por enquanto, é como estabelecer
com precisão o eixo que corta a
palma dos pés horizontalmente
abaixo dos dedos, essencial para
estimar a proporção. "Ainda temos um erro muito grande na
medição, dependendo do local na
curvatura do pé que escolhemos
para traçar o eixo", diz Webb.
Apesar disso, resultados preliminares estão mostrando que "a
ontogenia realmente recapitula a
filogenia", diz Webb. Para ele, as
medidas poderão fornecer, no futuro, estimativas da idade e do
grau de desenvolvimento dos hominídeos de Laetoli e de outros
ancestrais humanos pelo mundo.
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