São Paulo, quinta-feira, 07 de fevereiro de 2002

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HISTÓRIA

Arquivo dinamarquês divulga relatos de conversa de 1941 sobre bomba atômica que virou peça de teatro e romance

Texto de Bohr nega acordo com Heisenberg

MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA

Terminou o suspense: o Arquivo Niels Bohr, de Copenhague, divulgou os documentos do físico dinamarquês sobre seu encontro de setembro de 1941 com o alemão Werner Heisenberg, mantidos em sigilo por mais de 40 anos. A biografia do chefe do programa nazista para construir uma bomba atômica saiu um pouco mais chamuscada do episódio.
O principal documento, na leva de 14 publicados pela internet (www.nbi.dk/NBA/papers/introduction.htm), é o rascunho sem data de uma carta de Bohr a Heisenberg, provavelmente de 1957, que nunca foi enviada.
Esse é o ano considerado provável porque Bohr reage ao conteúdo de uma carta de Heisenberg ao escritor alemão Robert Jungk, com uma versão da conversa mantida em 1941 que provavelmente enfureceu Bohr: seu ex-pupilo alemão disse que eles teriam tratado de escrúpulos morais acerca da construção da bomba.
Na versão de Heisenberg, o desconforto de Bohr no encontro teria vindo de ficar sabendo, pelo alemão, que a construção da bomba era possível. O cientista dinamarquês afirma no rascunho ora divulgado que essa possibilidade já estava clara para ele fazia três anos. Escreve que se lembra de cada palavra dita e chama a atenção do colega mais jovem:
"Que meu silêncio e gravidade, como você escreve na carta, pudessem ser tomados como uma expressão de choque diante de seus relatos de que era possível fazer uma bomba atômica é um mal-entendido bastante peculiar, que deve ter ocorrido pela grande tensão em sua própria mente" (veja fac-símile e leia a íntegra do rascunho, de 1957, à direita).
A conversa de 1941 aparece como motivo central da peça "Copenhagen", de Michael Frayn, que se encontra em cartaz em São Paulo. Também funciona como elemento importante da trama do romance "Em Busca de Klingsor", de Jorge Volpi.
Ambas as obras focalizam os dilemas éticos da pesquisa científica quando ela se descobre capaz de produzir efeitos devastadores no mundo real. Um tema para lá de atual, com a física de partículas substituída no imaginário público pela não menos esotérica e perturbadora engenharia genética.

Sem acordo
Em 1962, Bohr ainda estava às voltas com a acuidade de suas lembranças sobre o episódio. No documento nš 11b liberado ontem, outro rascunho de carta nunca finalizada nem remetida, o pai da mecânica quântica nega com veemência que Heisenberg tenha insinuado algo sobre uma espécie de acordo de cavalheiros.
"Eu fixei cuidadosamente em minha mente cada palavra que foi pronunciada. Tinha de provocar uma forte impressão em mim que logo de cara você tenha afirmado sentir-se certo de que a guerra, se durasse o bastante, seria decidida com armas atômicas", escreveu Bohr. "É portanto bem incompreensível para mim que você possa pensar que tenha sugerido a mim que os físicos alemães fariam tudo que lhes fosse possível para impedir uma tal aplicação da ciência atômica."
Segundo o físico e historiador da ciência Gerald Holton, professor emérito da Universidade Harvard (EUA), a sucessão de rascunhos e cartas nunca postadas reflete duas peculiaridades de Bohr: a permanente insatisfação com a expressão verbal de suas idéias e o hábito de ditá-las (a letra do rascunho reproduzido à direita é de Aage Petersen, um assistente).
Holton foi provavelmente a primeira pessoa fora da família Bohr a ver o agora famoso rascunho, ainda em 1985, a pedido de Erik Bohr, filho do físico. Ele queria saber o que fazer do documento, se deveria destruí-lo. Holton diz ter recomendado manter o documento em arquivo.

Amizade destruída
Holton diz que Erik Bohr não lhe pediu sigilo de imediato, o que a família decidiu fazer em seguida, determinando que esses e outros papéis fossem divulgados somente depois de 2012 (decisão alterada pela liberação de ontem).
Diante do perfeccionismo de Niels Bohr e do que vivenciou em vários contatos com o dinamarquês em Harvard, Holton afirma não ter dúvidas de que a versão de Bohr é a correta. "É óbvio que se deve confiar na reconstituição de Bohr. É absolutamente confiável", disse, por telefone, à Folha.
O físico e historiador declara desconhecer as razões da família para manter sigilo sobre os documentos, mas diz ter sua própria hipótese -que serve também para explicar tantas versões de cartas nunca enviadas: os termos seriam incomumente fortes para o temperamento de Bohr, muito gentil. "[Trata-se de" algo que não mudou o mundo, mas que destruiu a amizade entre os dois", afirma Holton.



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