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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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UMA POLÍTICA INDUSTRIAL DIGNA DO NOME DEVERIA ELEGER COMO UM ALVO PRIORITÁRIO A FABRICAÇÃO DE MEDICAMENTOS DE ÚLTIMA GERAÇÃO NO BRASIL

A vanguarda improvável

John McConnico-29.ago.2002/Associated Press
Comprimidos do antiviral AZT, usado contra Aids, fabricados nos Aspen Pharmaceutical Research Laboratories, de Port Elizabeth, África do Sul


 O trem de ferro passa no campo entre telégrafos. Sem poder fugir sem poder voar sem poder sonhar sem poder ser telégrafo. ("A Moça e o Trem", João Cabral de Melo Neto)

Antonio Oliveira-dos-Santos
especial para a Folha

Na aurora do século 21, a discussão sobre inovação tecnológica permeia o ambiente científico brasileiro, atraindo ao debate as classes política e empresarial. Contudo, ressente-se a ausência de política industrial indicando o norte para a evolução do capitalismo industrial rumo a uma indústria pós-fordista, baseada no uso intensivo de conhecimento científico e de práticas empresariais socialmente responsáveis, geradoras de bens de impacto sobre a qualidade de vida.
No atual estágio da economia brasileira, chamar de "política industrial" a redução de impostos sobre veículos automotores, em períodos de retração da demanda, e outras ações pontuais do gênero, necessárias em certos momentos do ciclo econômico, constitui atentado ao intelecto. O horizonte de experiências do indivíduo delimita seu universo de sonhos. Todavia, sociedades bem-sucedidas na busca do bem-estar comum fomentam vanguarda capaz de expandir esse universo. O setor de medicamentos, pela importância estratégica, pelo alto valor agregado dos produtos e pela complexidade, é alvo potencial para verdadeira política industrial.
O capitalismo fordista (siderurgia, indústria de máquinas, petroquímica, têxtil, energia), evolução da primeira Revolução Industrial, produziu bens fundamentais ao avanço da qualidade de vida no século 20. Desafia-nos permitir seu acesso à maioria da humanidade desfavorecida, de modo ecologicamente sustentável.
Contudo, política industrial restrita ao fomento da indústria fordista em ambiente global competitivo não permitirá à sociedade brasileira acelerar seu desenvolvimento humano no século 21 (salvo desastres, ele continuará aumentando, porém em velocidade decrescente), visto que a produção fordista continua perdendo valor agregado em face da crescente inserção de países menos desenvolvidos na economia global. Atualmente, uma questão política se impõe à sociedade brasileira: qual a sua inserção no jogo econômico global? Retaguarda fiel, satisfeita em participar do jogo enquanto culpa adversários pelas próprias derrotas, ou vanguarda herética, capaz de competir, vencer e influir nas regras do jogo? Olhar para o capitalismo industrial na "Terra Brasilis" permite identificar uma empresa candidata a exemplo da economia do conhecimento, competidora global e vencedora: a Embraer. A Embraer resultou de um projeto de política industrial, ainda que seja um caso singular influenciado por razões nacionalista-militares. Sequer dependeu de vantagens competitivas preexistentes (recursos naturais, cadeia produtiva instalada, engenheiros e cientistas treinados). Ao contrário, o Brasil carecia de qualquer inserção no setor aeroespacial em 1969, mesmo ano da conquista da Lua. Passadas três décadas, o sucesso socioeconômico da Embraer, um projeto herético, é medido em empregos de qualidade, bens de alto valor agregado, impostos, superávit comercial e independência científico-tecnológica -possível plataforma para inserção no mercado de satélites.

Pacotes de pílulas e de royalties
No Brasil, a indústria de medicamentos ocupa o nicho global de importadores de insumos, empacotadores de pílulas e exportadores de royalties, a despeito do tamanho do mercado consumidor interno e regional (Mercosul). A empresa produtora de medicamentos genéricos funciona como reguladora de preços de medicamentos antigos, cujas patentes expiraram, mas pouco contribui com pesquisa e desenvolvimento (P&D). Mundialmente, a geração de novos medicamentos, mais eficazes e seguros, depende de empresas farmacêuticas e biotecnológicas de alta tecnologia, cujos investimentos em P&D ultrapassam US$ 30 bilhões anuais. Enquanto não conquista nichos em P&D de medicamentos, o Brasil alimenta dois cenários de desequilíbrio econômico e médico-social: a) crescente exportação de royalties e lucros e importação de insumos de alto valor agregado, necessários à manufatura local de medicamentos; b) negação de acesso a medicamentos mais eficazes para fração crescente da população, atentando "ad infinitum" contra o direito à saúde. O primeiro cenário transfere a setores mais competitivos da economia o ônus de equilibrar o déficit de comércio exterior do setor. O segundo mina o processo civilizatório e o projeto democrático brasileiro, ao negar ferramenta médica necessária à restauração da saúde de cidadãos a quem a medicina preventiva tenha sido insuficiente na garantia do direito à saúde. Na última década, o sistema de pós-graduação brasileiro formou número recorde de cientistas nas diversas áreas do conhecimento, titulando mais de 6.500 doutores ao ano. Nas ciências biológicas e biomédicas se observa aumento tanto quantitativo quanto qualitativo da produção científica. Em biotecnologia, fundamental à indústria de medicamentos, a comunidade acadêmica demonstra competitividade crescente. Esse caro esforço de produção de conhecimento e formação de cientistas, envolvendo dez anos ou mais por indivíduo, tem permitido expansão e melhora do ensino superior. Contudo, a sociedade brasileira necessita ampliar o retorno desse investimento, fomentando o aumento da produtividade de sua economia por meio da inserção de cientistas em atividades de P&D no parque industrial, que será essencial na conquista de novos nichos na economia do conhecimento, particularmente em setores estratégicos como o de medicamentos. Política industrial de fomento a P&D de novos medicamentos demandará duas vertentes complementares: a) criação de condições competitivas, levando empresas farmacêuticas transnacionais a investirem em P&D no Brasil; b) liderança pró-ativa dos agentes do Estado, tais como o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), levando o capitalismo industrial fordista e investidores institucionais a diversificarem investimentos em novas empresas ("start-ups") de biotecnologia. P&D de medicamentos requer escala de investimentos e experiência empresarial e apresenta tempo de maturação longo -mais de dez anos entre descoberta, testes pré-clínicos, manufatura, testes clínicos, aprovação por agências reguladoras e início da comercialização. Justamente a escala do investimento e sua longa maturação tornam fundamental a participação do Estado na coordenação da alocação de recursos da sociedade. No caso de "start-ups", após período de gestação de alguns anos, elas teriam o capital aberto (mercado de ações), permitindo ao Estado e a investidores originais obter lucros, diluir prejuízos e realocar capital às empresas de sucesso e novas "start-ups". A despeito do número crescente de cientistas envolvidos em pesquisa biotecnológica acadêmica no Brasil, ela difere substancialmente da P&D de medicamentos. O sucesso da política industrial requer atrair no mercado internacional cientistas e técnicos experimentados, permitindo aos cientistas locais, egressos da academia, atingir produtividade equivalente à mundial em tempo razoável e evitando desperdícios na "reinvenção da roda". A taxa de insucesso do setor de medicamentos, inerentemente elevada (historicamente, menos de 5% das pesquisas resultam em novo medicamento), torna essa atividade incompatível com amadorismo.

Atores do debate ecológico sofrem de miopia utópica, defendendo a intocabilidade de ecossistemas, esquecendo que a preservação depende da qualidade de vida. É necessário tornar a depredação desinteressante

Biodiversidade
O aproveitamento de recursos naturais de modo social e ecologicamente responsável está na agenda política mundial, graças em parte à formalização do debate mediada pela ONU (Organização das Nações Unidas) nos anos 1990. Para países com baixo desenvolvimento humano e ricos em biodiversidade, como o Brasil, a exploração desses recursos biológicos tem potencial para melhorar a qualidade de vida da população mundial e de populações locais em particular.
Frequentemente, atores do debate ecológico sofrem de miopia utópica, defendendo a intocabilidade como forma preferencial de proteção a ecossistemas ameaçados e esquecendo que a almejada preservação depende a longo prazo de melhora da qualidade de vida de populações locais. É necessário tornar a depredação ambiental socioeconomicamente desinteressante.
A biodiversidade brasileira tem potencialidade para fornecer novas moléculas de valor farmacológico, com a vantagem de ser essa exploração ecologicamente sustentável: em geral, moléculas encontradas na natureza servem apenas como modelo inicial em P&D de medicamentos, a partir do qual análogos químicos sintéticos são gerados em laboratório e otimizados, através de anos de pesquisa, até apresentar características farmacológicas (eficácia e segurança) compatíveis com o uso terapêutico em seres humanos.
Que dizer da figura hollywoodiana do cientista buscando ervas milagrosas na floresta, a cura do câncer e de outras doenças? Ficção romântica. Para que a humanidade usufrua de medicamentos derivados da biodiversidade inexplorada no planeta e populações locais ganhem em qualidade de vida de forma suficiente para permitir a preservação desses ecossistemas, são necessários investimentos altos e profissionais em P&D.
O Brasil possui capacidade instalada em pesquisa acadêmica apta a responder à demanda futura de recursos humanos, biodiversidade entre as maiores do planeta, capital industrial e financeiro passível de ser mobilizado na direção da economia do conhecimento e grande mercado consumidor de medicamentos interno e regional. Condições mínimas, no aguardo de política industrial agressiva e profissional que viabilize uma indústria de medicamentos baseada em P&D e ocupação de nichos inexplorados do mercado mundial. A vanguarda é possível, mas não fruto de geração espontânea.


Antonio Oliveira-dos-Santos, 35, cientista do Amgen Cambridge Research Center (EUA), é médico formado pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), doutor em biologia celular e molecular pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e pós-doutorado pela Universidade de Innsbruck (Áustria)

E-mail: Antonioo@Amgen.com


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