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São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2003

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Ciência em Dia

Genes e germes da esperteza

Marcelo Leite
editor de Ciência

Na semana que passou, uma notícia de grande e longo impacto no mundo da biotecnologia foi ofuscada por outra de efeito mais bombástico, no campo da mudança climática global: o provável desembarque da Rússia do Protocolo de Kyoto, o tratado que tenta criar metas de corte nas emissões, pelo homem, de gases que agravam o efeito estufa.
O rompante anticlimático do Kremlin contou, porém, com a devida atenção. O que recebeu menos destaque foi o anúncio feito na Alemanha de que o Escritório Europeu de Patentes concedeu uma dessas proteções amplas para técnicas de engenharia genética que fazem ambientalistas e adversários das biotecnologias subirem nas tamancas.
Na realidade, o anúncio havia sido feito na semana anterior e passado um tanto despercebido. A patente fora concedida à principal instituição de pesquisa alemã, a Sociedade Max Planck (conhecida pela abreviação MPG, em alemão), e dava cobertura a um dos procedimentos mais precisos para modificar genes de plantas, empregando a Agrobacterium tumefaciens. Ato contínuo, a MPG firmou com a empresa Bayer CropScience um acordo de licenciamento que dava à companhia exclusividade sobre a tecnologia.
"Tecnologia" é modo de dizer. Embora as principais agências patentárias do mundo já tenham firmado uma espécie de jurisprudência sobre a patenteabilidade de mecanismos biológicos e mesmo de microrganismos inteiros, no caso foi a capacidade natural dessa bactéria de solo de infectar plantas que ganhou proteção como propriedade intelectual. Algo "inventado" pelo germe e apenas descoberto pelos cientistas da MPG.
Ao infectar plantas, a A. tumefaciens provoca a multiplicação de células vegetais e o surgimento do tumor conhecido como galha da coroa (limite entre tronco e raiz), em cujo interior a bactéria pode proliferar. O microrganismo enxerta genes nas células do vegetal, que o fazem produzir as substâncias especificadas nessas sequências genéticas e indutoras do tumor. O agente da inserção é um tipo de DNA circular conhecido como plasmídio Ti (do inglês "tumor-inducing").
Os biotecnólogos nada mais fazem do que plagiar a esperteza agrobacteriana. Tomam seu plasmídio Ti, retiram as sequências produtoras da galha e enxertam os genes de seu próprio interesse (por exemplo, trechos de DNA que ensinem a planta a produzir inseticida em suas próprias células). O plasmídio vira uma ferramenta, e é claro que alguém teve a idéia de fazê-lo, mas o busílis, o princípio mesmo de seu funcionamento, não é uma invenção humana -não mesmo.
A patente conferida à Bayer encerraria em princípio uma disputa de 20 anos com a Monsanto, que usa e abusa da A. tumefaciens e alega ter desenvolvido independentemente sua própria técnica para criar vegetais transgênicos, como a polêmica soja resistente a herbicida. Segundo reportagem do jornal norte-americano "St. Louis Post-Dispatch", porém, a Monsanto -que tem sede no mesmo Estado de Missouri- entende que o caso não está encerrado. Ao menos nos EUA, as empresas teriam ainda muitas batalhas legais pela frente.
Qualquer que seja o resultado, do lado de cá seria o caso de atentar para duas questões: se é mesmo aceitável essa interpretação de que um mecanismo biológico pode ser patenteado e se é do interesse de todos que uma tecnologia tão fundamental (ainda que polêmica) fique sob o controle de uma única empresa.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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