São Paulo, domingo, 08 de julho de 2007

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Estado violência

O povo wari, que viveu no Peru até o século 11, não fugiu à regra dos grandes impérios: usou a violência para se expandir

Jaime Razuri/France Presse
Múmia wari com dedos amarrados; ossos achados no Peru exibem diversos traumas


DA REDAÇÃO

Q ue os waris não eram exatamente um povo pacífico a arqueóloga americana Tiffiny Tung já sabia. Quando começou suas escavações dos vestígios daquela grande civilização, que no primeiro milênio da Era Cristã já fazia prédios à prova de terremotos na região de Ayacucho, Peru, Tung tinha plena consciência de que estava diante do primeiro império expansionista das Américas. E nenhuma política imperial expansionista acontece sem alguma dose de violência.
O que Tung não podia adivinhar era o quão disseminada a violência se tornou em toda a extensão do império wari, do centro à periferia, em todas as camadas sociais, da elite às humildes vilas de pescadores.
Esse quadro começa a se delinear agora. Em um estudo publicado na última edição da revista científica "American Journal of Physical Anthropology", a pesquisadora analisa 181 esqueletos humanos desenterrados nas ruínas de três vilas waris. Seus crânios, datados do ano 650 ao 800 (o império durou até o ano 1000), exibem grau alto de fraturas -muitas delas fatais- feitas por armas contundentes, como maças e boladeiras. A proporção de crânios fraturados na população (até 30%) era mais alta entre os waris do que em outras populações andinas (11% em média).

Caçada humana
As marcas nos ossos indicam que a violência não conhecia barreiras de sexo nem idade. Em um dos sítios, a vila de La Beringa, no vale do rio Majes (perto da atual cidade de Arequipa, no sul do país), 31% dos crânios femininos e 13% dos de jovens de ambos os sexos apresentam sinais de fratura. Algumas das marcas de golpe não acompanham sinais de regeneração do osso, o que indica que a pancada pode ter sido fatal.
Beringa não era central para o império. A vila de pescadores e tecelões, aparentemente, não tinha interferência direta da capital, em Ayacucho.
Várias das fraturas em seus antigos habitantes aparecem na parte de trás do crânio, o que indica que "os habitantes de Beringa podem ter sido feridos durante reides (incursões militares) realizados por outros grupos", escreveu Tung.
Os antropólogos estimam, com base em relatos históricos, que esse tipo de violência sistemática cresceu nas Américas após a conquista européia, no século 16, mesmo entre tribos que estavam longe do contato com os invasores.
"Sua influência regional reverberou através da região, desestabilizando redes políticas e alianças de comércio, agravando ou criando tensão entre as comunidades nativas", afirma a pesquisadora americana. "É possível que a influência imperial wari tenha tido um efeito semelhante."
A localização do sítio de La Beringa, no alto de um morro, parece ser uma indicação sinistra de que seus moradores já esperavam ser perseguidos.

Resolvendo na pancada
Em outro sítio, o de La Real, os esqueletos são predominantemente masculinos e têm fraturas -poucas delas fatais- concentradas no rosto. O padrão é semelhante ao encontrado entre outras populações pré-colombianas entre as quais os conflitos se resolviam na porrada, na forma de batalhas rituais conhecidas nos Andes como "tinku".
La Real, também no vale do rio Majes, era um cemitério onde eram enterrados membros da elite. Para Tung, o envolvimento nessas batalhas rituais provavelmente exigia um bocado de coragem e deveria servir como "credencial" para garantir pelo menos um enterro entre os "bacanas".

Sem "Pax"
O trabalho de Tung, que neste momento trabalha em Ayacucho, ajuda a entender a centralização política na América do Sul, que teve nos mais de 3.000 km de extensão do império inca sua expressão máxima.
A civilização wari surgiu paralelamente a outra civilização andina, tiwanaku, famosa por um centro cerimonial na Bolívia e que estendeu sua influência a toda a região do lago Titicaca e ao norte do Chile. O arqueólogo chileno Luís Briones Morales, da Universidade de Tarapacá, chama os waris de "braço armado" de Tiwanaku.
O qualificativo não parece despropositado: enquanto tiwanaku estendia sua influência por meio de religião e comércio, os waris tinham métodos mais, digamos, persuasivos.
Os waris não souberam muito arrefecer o ânimo belicoso, o que ocorreu no caso dos incas. Por mais de um século, os níveis de violência continuaram altos. Talvez nesse desassossego resida ao menos parte da explicação para o colapso do grande império, no ano 1000.
(CLAUDIO ANGELO)


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