São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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MUTAÇÕES GENÉTICAS E TERAPIAS BIOTECNOLÓGICAS AMEAÇAM CRIAR UM NOVO TIPO DE DOPING, QUE AFETA DIRETAMENTE O DNA E NÃO PODE SER DETECTADO POR TESTES EXISTENTES HOJE

ATLETAS TRANSGÊNICOS

Ricardo Bonalume Neto
da Reportagem Local

Soja, algodão ou tomate transgênicos já causam um bocado de discussão. Mosquitos geneticamente modificados para combater a transmissão de doenças também criam celeuma, apesar de estarem um pouco mais distantes no horizonte do cientificamente possível. Os Jogos Olímpicos de Atenas, que começam no próximo dia 13, acendem uma cizânia nova -quiçá precoce, mas que poderá facilmente eclipsar essas ligadas a vegetais e pestes vulgares. Descobertas recentes e tratamentos próximos indicam que está raiando a era do atleta transgênico. Soja, algodão ou tomate, mesmo da variedade não-transgênica -isto é, com genes adicionados pelo homem-, estão longe de serem plantas "naturais". Essas culturas foram modificadas por milênios por um processo "artificial" chamado agricultura. Essa seleção de variedades pelo homem produziu frutas e legumes que não existiam na natureza, bastando mexer na sua "natural" variedade genética. Atletas são seres diferentes do resto da humanidade, assim como um tomate vermelho, suculento e enorme hoje em um supermercado do mundo ocidental difere dos tomates ancestrais plantados pelos astecas no México. Atletas procuram atingir os limites físicos da espécie, correndo, nadando e transportando ou arremessando itens variados, sejam dardos ou pesos de ferro. Para isso, treinam todo dia, usando suas oito horas de trabalho para moldar músculos, nervos e reflexos. Alguns acham que o corpo precisa de ajuda extra e recorrem ao doping, nome dado a qualquer substância capaz de dar um impulso extra para quebrar um recorde ou vencer uma competição. Pois por mais que o tal "ideal olímpico" seja competir, vencer é o que anima esses homens e mulheres diferentes do resto. A genética promete criar uma bela confusão no esporte, ao introduzir uma zona cinzenta ética.

Falácia naturalista?
É errado, diz o consenso, usar uma substância química que modificaria o funcionamento "natural" do corpo humano. Mas seria legítimo usar um acessório "artificial" -como um maiô revolucionário, que imita os hidrodinâmicos dentículos da pele dos tubarões e dá uma ligeira vantagem a quem o usa. Não se trata de uma questão de igualdade, de o jogo começar com os jogadores na mesma condição de competir. Todos podem teoricamente comprar o tal maiô, assim como todos teoricamente poderiam usar quaisquer substâncias disponíveis no mercado. Atletas geneticamente modificados para serem mais fortes ou mais resistentes também não seriam "naturais", pois não nasceram assim. Mas também não seriam "artificiais", pois o material genético agregado existe na natureza. Mais ainda: nem teriam como ser identificados em testes de doping, pois suas alterações não seriam detectáveis em exames de sangue ou de urina. O melhor exemplo dessa "zona cinzenta" vem de um caso perfeitamente "natural", lembrado por um pesquisador que trabalha com a genética dos músculos, H. Lee Sweeney, da Universidade da Pensilvânia (EUA). Em artigo na revista "Scientific American", também traduzido na edição brasileira da revista, Sweeney lembra o caso do esquiador finlandês Eero Mäntyranta, que conquistou duas medalhas de ouro na Olimpíada de 1964. "Mas foi só décadas mais tarde que cientistas finlandeses identificaram uma mutação, presente em toda a família de Mäntyranta, que provoca uma resposta exagerada à eritropoietina, gerando um número excepcionalmente alto de glóbulos vermelhos. Vários membros da família também eram campeões em esportes de resistência", afirma Sweeney. A resistência é fundamental em boa parte dos esportes olímpicos, e ela depende da capacidade de os músculos receberem uma carga constante oxigênio do sangue através dos glóbulos vermelhos. O hormônio eritropoietina estimula a produção dessas células vermelhas do sangue. Mäntyranta, portanto, tem o que se poderia descrever como uma dopagem genética natural. É justo que ele esteja competindo com essa vantagem natural? E se um atleta usar uma versão sintética da eritropoietina para melhorar a produção de glóbulos vermelhos, como vários atletas já fizeram e confessaram? Indo mais longe, e se um atleta optar por introduzir em seu organismo um gene ligado à produção extra de eritropoietina -como o que existe em Mäntyranta?

Mutante
Ficando ainda no terreno do "natural", existe um outro caso que assusta as entidades ligadas ao controle do doping e deixa inquietos os admiradores românticos dos esportes -aqueles que ainda acham que os Jogos promovem o esporte dito amador em contrapartida ao "profissional". Deu no "The New England Journal of Medicine" (www.nejm.org), uma das mais importantes revistas de medicina do terceiro planeta girando em torno do Sol: descobriu-se uma criança com músculos muito acima do normal devido a uma mutação genética.
A mutação envolve o gene da miostatina, uma substância que atua regulando a massa muscular. Sem miostatina, camundongos se tornaram bichos fortões e musculosos. Notou-se que o bebê já tinha nascido com músculos hipertrofiados. A alteração genética descoberta envolve a redução da produção de miostatina. Hoje com quatro anos de idade, o garoto continua bem mais forte do que seria normal. Sua mãe foi atleta profissional.
O garoto poderia facilmente se tornar um bom atleta, começando com essa vantagem natural. Discutindo a descoberta, a médica Elizabeth McNally, da Universidade de Chicago, também nos EUA, lembra um outro dilema ético potencial: a identificação de mutações genéticas ligadas à miostatina pode servir como um teste para identificar atletas em potencial.
Ela lembra que um atleta bem-sucedido depende tanto da sua natureza como do ambiente em que treina. Mas ela lembra: "Atletas profissionais de segunda e terceira gerações não são algo fora do comum e podem dever suas proezas em parte à seleção natural para variantes de genes como o da miostatina, que conferem uma predisposição para capacidade atlética realçada".
A pesquisa com miostatina poderia ser mais facilmente criticada se sua única função fosse melhorar a vida dos atletas. Na verdade, o interesse dos cientistas nessa substância reguladora dos músculos está ligado ao combate a doenças degenerativas, como as distrofias musculares.
"O bloqueio da miostatina poderá ser útil no tratamento de estados degenerativos musculares mais comuns, como os que ocorrem com o envelhecimento", diz a médica.
Há quem diga que atletas transgênicos já estarão nesta Olimpíada, em Atenas. É o caso de Andy Miah, pesquisador britânico e autor do livro "Genetically Modified Athletes" ("Atletas Geneticamente Modificados", em inglês, ainda sem tradução no Brasil). Miah acha que o atleta transgênico não é algo negativo.
"A idéia de um atleta naturalmente perfeito é bobagem romântica. Um atleta consegue o que consegue utilizando todo tipo de meio -tecnologia, patrocínio e por aí vai. Utilizar a modificação genética é meramente uma continuação do modo como o esporte funciona, ela nos permite criar desempenhos mais extraordinários", declarou Miah, numa entrevista recente à imprensa britânica.
Mas essa opinião promete permanecer isolada por algum tempo. A Wada, sigla em inglês para Associação Mundial Antidoping, já está estudando meios de combater a dopagem genética. Como a associação vai fazer isso ainda é um enigma.
"Nós somos todos transgênicos", disse certa vez um dos mais importantes geneticistas brasileiros, Francisco Mauro Salzano, do Instituto de Biociências da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), lembrando que do material genético de um ser humano constam pedaços que vieram de outros seres vivos. Convém lembrar que aquilo que pode parecer "artificial" pode ser, no fundo, uma ocorrência natural. O finlandês Mäntyranta que o diga.


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