São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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Ciência em dia

Barbaridades transgênicas

Marcelo Leite
editor de Ciência

No auge da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio +10), reunião para combater a pobreza e as ameaças ao ambiente que terminou no meio da semana na África do Sul, muita gente ficou escandalizada com a notícia de que países como Zâmbia e Zimbábue recusaram alimentos doados por outras nações. A razão da recusa é mais um exemplo de que ciência e política não se separam facilmente: os carregamentos continham transgênicos.
Só em Zâmbia há 2,4 milhões de pessoas correndo risco de morrer de fome. Em todo o sul da África, que enfrenta a maior crise alimentar em dez anos, 13 milhões de habitantes vegetam nesse limiar da sobrevivência. Parece evidente a imoralidade de negar-lhes comida, de que tipo seja, como decidiram os presidentes zambiano, Levy Mwanawasa, e zimbabuano, Robert Mugabe.
Como sempre, a questão é um pouco mais complicada do que parece.
Não sei que apito toca a organização World Food Programme (WFP), mas seu diretor-executivo, James Morris, disse à agência de notícias Reuters que precisava de 15 mil toneladas de milho suspeito de conter transgênicos para tentar matar a fome dos 2,4 milhões de zambianos. Um testemunho de peso:
"Diria que 75% dos alimentos com que temos de trabalhar neste momento vêm de fontes que produzem commodities biotecnológicas, geneticamente modificadas. Não há evidência de que sejam minimamente prejudiciais para a saúde de ninguém. Satisfazem a todos os padrões que temos... Essa coisa é segura."
Seria difícil encontrar alguém contrário ao nobre trabalho de Morris e seus colaboradores na WFP, mas tampouco faltaria gente para dizer que se equivoca em sua defesa enfática da biossegurança do milho geneticamente modificado.
David King, por exemplo, conselheiro científico do premiê do Reino Unido, Tony Blair. Segundo o diário britânico "The Observer", King disse que inundar países africanos famintos com OGMs (organismos geneticamente modificados) equivaleria a um "experimento humano massificado".
Embora não o tenham dito, King e Morris deixam implícito que consideram pouco civilizado pensar de modo diverso do que cada um deles pensa. Como são visões excludentes, conclui-se que primitivo -no mau sentido- talvez seja o seu próprio modo de raciocinar.
Existe muito debate, dentro e fora da comunidade científica, sobre a segurança dos transgênicos (vegetais que têm o DNA alterado para adquirir características como resistência a herbicidas e pragas agrícolas). Morris tem razão, porém, ao dizer que não há caso conhecido de alimento transgênico autorizado para cultivo comercial que tenha causado dano à saúde de seres humanos.
Isso não tem nada a ver com ser ou não correto doar OGMs para matar a fome de africanos. Em muitos países civilizados (ou semicivilizados, como o Brasil), transgênicos estão proibidos. Não tem cabimento concluir que africanos têm de aceitá-los só porque passam fome.
É preciso também levar em conta o contexto: um dos principais motes propagandísticos da indústria biotecnológica é que os transgênicos vão resolver o problema da fome no mundo, argumento tido por muitos como risível (a questão seria distributiva e não tecnológica).
Desconfio que pobres zambianos e zimbabuanos -a exemplo dos índios dos filmes não menos maniqueístas de faroeste- entram nessa história como figurantes, apenas para morrer.


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