São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2006

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+Marcelo Leite

Deus, a América, o DNA e o Nobel


Na premiação para ciências, os EUA podem mesmo ter sido abençoados


Deus abençoe a América", gostam de dizer estadunidenses. Por América, entendem o seu próprio país, claro. Se são tão abençoados quanto acreditam, é difícil dizer, mas em matéria de Nobel podem mesmo se considerar divinamente agraciados, em particular no que respeita aos galardões para ciências naturais.
Todos os cinco ganhadores deste ano são americanos. Salvo engano, não há nem americanos naturalizados entre os Nobel de ciências de 2006.
Andrew Fire e Craig Mello ficaram com o de Medicina ou Fisiologia, por terem descoberto o fenômeno conhecido como interferência de RNA (RNAi). O processo natural regula a produção de proteínas na célula a partir de informações do DNA. O mecanismo já encontra larga utilização na pesquisa biomédica, por ser um meio de "silenciar" genes inoportunos (envolvidos em doenças, por exemplo).
John Mather e George Smoot ganharam o de Física. Seu feito foi ter registrado uma espécie de fotografia dos primeiros momentos do Universo, um eco do Big Bang. Além de confirmar a existência da radiação cósmica de fundo, deram-lhe um rosto e mostraram que tinha rugas, não era homogêneo. Dessas diferenças teriam nascido todas as galáxias e estrelas.
Roger Kornberg levou o de Química, pelos resultados de duas décadas de trabalho sobre os detalhes do conjunto de moléculas que faz a leitura do DNA, como um pulso de laser extrai as informações de um CD ou DVD. Arthur Kornberg, seu pai, havia recebido o Nobel de Medicina de 1959, também por revelações sobre DNA e RNA.
Que lições devem ser retiradas da premiação? Bem, assistir à conferência do próprio pai em Estocolmo aos 12 anos, na véspera do Natal, deve ser um poderoso incentivador de vocações científicas, mas não muito prático. Nascer nos Estados Unidos não atrapalha, mas tampouco resolve.
Fundamental, mesmo, é encontrar um ambiente escolar e acadêmico que fomente a curiosidade e a mentalidade científicas. Isso só está disponível em países cuja população -ou elite?- se conscientizou da importância e da utilidade da pesquisa, sem negligenciar a nutrição de talentos na educação básica.
Hoje se discute nos EUA se a administração George W. Bush não ameaça esse valor americano básico. Ele se esforça nesse sentido, ao eleger como inimigos os cientistas com visões opostas às suas em matéria de mudança climática global e pesquisa com embriões. Até censura está valendo.
Agora, se quiser muito ganhar um Nobel, o pesquisador de qualquer país verá suas chances aumentarem ao investir toneladas de talento e recursos em biologia molecular -DNA, RNA, genes etc. Em 1958 iniciou-se uma série dilatada de prêmios para essa área, culminando com os de 2006.
Cerca de um terço das premiações em Medicina pós-1958 saíram para a escola que tem James Watson e Francis Crick como patronos. Isso para não falar de um quinto dos de Química abiscoitados pela mesma turma. Nada mau para uma disciplina (biologia) que nem mesmo estava no radar original de Nobel. Deus salve o DNA, pois a ciência crê que nele está escrito o Livro da Vida.
Se precisarem de fé, os biólogos moleculares podem inspirar-se no exemplo de George Smoot. Em 1992, ao anunciar seu registro do eco do Big Bang, afirmou: "Se você for religioso, é como ver Deus". Não foi a primeira nem a última vez que pesquisadores americanos associaram sua missão secular com manifestações divinas. No fundo, não estão assim tão divorciados de seu presidente.

MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático "Pantanal, Mosaico das Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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