São Paulo, segunda-feira, 09 de fevereiro de 2004

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AMBIENTE

"Rodovia" antártica estará pronta em março de 2006 e atravessará 1.600 km; impacto ecológico da obra preocupa

Estrada de gelo vai ligar base ao pólo Sul

France Presse/NSF - 01.nov.2002
Trator trabalha perto da base polar antártica Amundsen-Scott


ALISON GEORGE
DA "NEW SCIENTIST"

Você pode imaginar o anúncio de emprego: "Precisa-se de engenheiro rodoviário. Exige-se que goste do frio e esteja preparado para viajar até o fim do mundo. Os que têm calçados para neve terão preferência".
As exigências podem soar peculiares, mas são apenas o que é preciso para um dos mais incomuns projetos de engenharia já realizados. Quase um século depois que os exploradores Amundsen e Scott travaram sua disputa para atingir o pólo Sul, uma equipe americana está indo na mesma direção para construir uma estrada conforme avança.
Nos últimos dois meses, durante o dia interminável do verão antártico, seus tratores de esteira rugiram pelo gelo, abrindo uma rota da costa até o pólo. Com conclusão marcada para março de 2005, essa estrada irá se estender por mais de 1.600 km. Mas como eles esperam construir uma auto-estrada em placas de gelo em constante modificação? E o que essa estrada poderia fazer ao ambiente virgem pelo qual passa?

Rodovia no gelo
Primeiro, é bom esclarecer algumas coisas: não haverá asfalto e linhas amarelas. A estrada será escavada no próprio gelo, com rachaduras tapadas, protuberâncias alisadas e deslizamentos de neve afastados. Começando na grande base costeira americana em McMurdo, na ilha Ross, a rota irá passar pela plataforma flutuante de gelo envolvendo a base e pelas montanhas Transantárticas. Então irá avançar pela grande extensão do platô até a estação Amundsen-Scott, no pólo.
Ninguém gastaria mais de US$ 12 milhões em um projeto longo executado em temperaturas abaixo de zero sem uma boa razão. Todas as coisas necessárias para viver e trabalhar no pólo Sul são importadas de McMurdo, e esse trabalho é feito hoje por uma frota de aeronaves C-130.
Mas essa dependência limita a temporada de viagens ao pólo a alguns poucos meses do verão em que as condições meteorológicas permitem o vôo. E quando há trabalho de construção em andamento e um grande equipamento é exigido, a demanda por tempo nas aeronaves é intensa.
Entretanto, se fosse possível levar cargas pesadas até a estação Amundsen-Scott em comboios de tratores de neve, as aeronaves estariam livres para transportar os pesquisadores pela Antártida. A auto-estrada de gelo é uma tentativa de testar se uma rota terrestre para o pólo pode ser estabelecida, diz Karl Erb, da Fundação Nacional de Ciência dos EUA.
Nenhuma outra nação foi tão longe para cavar uma estrada no gelo. Tratores já fazem a árdua jornada para reabastecer a base russa no lago Vostok, por exemplo, e equipes francesas e italianas viajam pelo gelo a cada ano para seu sítio de pesquisa em uma região chamada Dome Concordia. Mas há um fator de confusão que faz a rota americana ser muito mais desafiadora: rachaduras. E há uma porção delas em partes do traçado escolhido.
Esses abismos no gelo são a maldição de todo explorador antártico. A maioria é coberta por uma camada de neve, e o aventureiro insuspeito não tem idéia de que está pisando sobre um vazio até a crosta ceder. Algumas são tão profundas que não dá para ver o fundo. E já engoliram vários veículos e pessoas, normalmente com conseqüências fatais.
Infelizmente, o caminho que leva de McMurdo ao pólo está cheio desses perigos, e eles não podem ser evitados. A área que concentra as rachaduras foi vencida no último verão, no primeiro estágio do projeto. Um trator de neve liderou o avanço, rastreando rachaduras com um radar.
Onde encontrava uma rachadura, um montanhista descia para verificar a profundidade. A ponte de neve que cobria a rachadura era explodida com dinamite, antes que tratores de esteira cobrissem o buraco com neve. O resultado é uma rota de três metros de largura feita de gelo sólido.

Atraso
O resto do projeto deveria ter sido mais fácil. Nesta temporada, os tratores abriram caminho pela plataforma de Ross. Entretanto, neve incomumente macia atrasou o progresso e agora a estrada provavelmente não estará pronta até março de 2006.
Mas como essa estrada se encaixa nas regras estritas do Tratado Antártico para preservar o continente da poluição e da exploração indevida? Por exemplo, a Fundação Nacional de Ciência dos EUA reservou dez toneladas de explosivos e 500 mil litros de óleo diesel para completar o projeto. Além da poluição pela exaustão e os traços de explosivos deixados no gelo, combustível derramado poderia ameaçar grandes áreas.
Vinte galões de óleo sendo arrastados por um espaço tão grande quanto a Antártida podem não parecer muito, "mas quando é a primeira vez que 20 galões são derrubados ali, esse é um impacto muito maior", diz Josh Stevens, da Coalizão da Antártida e do Oceano Austral, um grupo ambiental com sede em Washington.
O principal pomo da discórdia é que ninguém realizou um estudo rigoroso de impacto ambiental antes do início dos trabalhos. "O sistema do Tratado Antártico nunca teve a oportunidade de revisar o que parece ser um grande empreendimento até que tivesse começado", diz Stevens.
"Sem uma revisão ambiental abrangente, não há meio de saber o impacto de tudo isso." O efeito que a estrada terá ficará mais claro quando a Fundação Nacional de Ciência dos EUA apresentar seu relatório completo, em maio. Mas quando isso acontecer o projeto já estará na metade.
Duas questões importantes permanecem. Primeiro, os engenheiros serão capazes de manter a estrada? Tempestades de inverno poderiam bloqueá-la com deslizamentos de neve que precisarão ser afastados antes que os comboios possam passar. Segundo, e pior, ela está sendo construída em gelo que se move a velocidades de até um metro por dia em alguns lugares. Que efeito isso terá?

Novas rachaduras
"As rachaduras vão abrir de novo após algum tempo, mas ninguém sabe quanto tempo", diz Sridhar Anandakrishnan, um glaciologista da Universidade Estadual da Pensilvânia e veterano de 13 viagens de campo pela Antártida. Verificações neste ano não viram novas falhas na estrada.
Embora seja só vista como uma rota de suprimentos até o pólo, a estrada poderia abrir grandes campos de natureza selvagem para várias pessoas, afirma o ambientalista Stevens. "Nós já vimos isso com muitos projetos diferentes." Hoje, já há mais de 10 mil turistas que visitam o continente a cada ano. É uma bela quantidade de passeios de ônibus.



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