São Paulo, domingo, 9 de agosto de 1998

Próximo Texto | Índice

CIÊNCIA
Complexo de rejeição afeta cientistas no país, diz a primeira brasileira editora da "Nature"
À frente da pesquisa

RICARDO BONALUME NETO
especial para a Folha

Uma cientista brasileira de 32 anos ajuda a moldar uma das principais revistas científicas do planeta, a britânica "Nature", de mais de um século de idade.
Andrea Kauffmann Zeh, mineira de Conceição do Mato Dentro, começa algumas respostas com o clássico "uai". Ela é a primeira brasileira a ser uma editora da revista. Trata-se de uma responsabilidade pesada. A "Nature" e sua arqui-rival norte-americana, a "Science", são as duas principais revistas científicas multidisciplinares de circulação internacional.
Antes de se tornar uma editora da área de biologia, Andrea estava fazendo doutorado e pós-doutorado no Reino Unido. Especialista na sinalização bioquímica entre as células, ela conseguiu publicar um artigo na "Science" e, em seguida, outro na "Nature" -este último, sobre a morte celular programada (apoptose), foi um dos "papers" mais citados no mundo em 1997 -mais citado, por exemplo, que o artigo que descrevia a clonagem da ovelha Dolly, também publicado na "Nature".
Pouco depois de sair seu artigo, ela foi contratada pela revista.
Andrea concorreu com cerca de 300 jovens cientistas para obter o cargo e passou por uma entrevista de sete horas. É compreensível, pois sua função é receber artigos científicos produzidos pela nata da ciência mundial e selecionar alguns deles para exame por pares -outros cientistas encarregados dessa chamada "peer review".
Chegam por semana 200 artigos na "Nature". Os editores fazem a primeira triagem. Cerca de 30 vão para os "pares", cientistas renomados que avaliam as novas pesquisas. Em média, dez artigos são publicados semanalmente pela revista. A entrevista foi realizada durante sua passagem pelo Brasil para conversar com cientistas locais.

Folha - Por que você decidiu largar sua carreira de pesquisadora e se tornar uma editora da "Nature"?
Andrea Kauffmann Zeh -
Eu sempre tive vontade de fazer algo assim. Entendi que meu desafio como pesquisadora era mais intelectual do que de bancada. Em uma etapa da vida, você tem objetivos práticos. Mas chega uma hora em que o pesquisador começa a ter um papel na formação, de pensar. No meu caso, cheguei em uma encruzilhada. Ou teria a vida dura de um jovem pesquisador em um laboratório, ou trabalharia em um "journal", e tinha de ser a "Nature", para poder ter nas minhas mãos a pesquisa de ponta.
Folha - Não é uma grande responsabilidade decidir sobre isso?
Zeh -
No começo, eu tinha pesadelos: será que estou fazendo a coisa correta? Tenho o poder de interferir em como é feita a ciência de ponta. Não é dramático -há o corpo editorial e o "peer review". É um pouco assustador no começo, mas, ao mesmo tempo, é o chamariz. Eu tenho mais peso na ciência do que teria com a carreira padrão de um jovem pesquisador. Sou impaciente. E adoro isso, tenho contato com os melhores cientistas do mundo nessas áreas.
Folha - E por que você veio ao Brasil agora?
Zeh -
A "Nature" reconhece o imenso potencial da ciência no Brasil. Todos os editores da revista têm de fazer periódicas visitas a laboratórios, as "lab visits". Sendo brasileira, nada mais natural que a revista me enviasse ao Brasil. Logo que comecei, o editor da "Nature", Philip Campbell, me falou que seria interessante se eu viesse ao Brasil para isso.

Complexo de rejeição
Folha - Quais instituições você visitou?
Zeh -
Com tempo reduzido, tive de me concentrar em alguns locais, como departamentos da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da USP (Universidade de São Paulo), além da Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), as fundações de amparo à pesquisa dos Estados de São Paulo (Fapesp) e de Minas Gerais (Fapemig), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Folha - Por que tão poucos brasileiros publicam na "Nature"?
Zeh -
Primeiro, porque poucas pessoas mandam artigos. Há um complexo de rejeição. Pessoas que têm coisas boas na mão e não percebem acabam mandando o artigo para publicações menos prestigiosas, para não correr o risco de rejeição. Não é fácil ganhar um "não" depois de três ou quatro anos trabalhando em algo. Mas isso não acontece só no Brasil. Por outro lado, existem pesquisadores que entendem melhor o sistema, sabem que tipo de "paper" a "Nature" está procurando. Não é só o óbvio, a novidade. Tem que também abrir uma nova perspectiva de pesquisa, com uma mensagem forte, poderosa.
Folha - Existe algum atalho? O pesquisador pode fazer uma submissão prévia do assunto da pesquisa para saber se há interesse?
Zeh -
Eu recomendo que o pesquisador vá ao site da "Nature" na Internet (www.nature.com) e envie uma ou duas páginas sobre sua pesquisa. Claro que nós, editores, preferimos ter o artigo em mãos para avaliá-lo. Mas a submissão prévia garante uma resposta em 48 horas, e você fica sabendo se sua pesquisa é de interesse dos editores, em princípio. Antes de mandar para uma outra revista, conviria ao pesquisador brasileiro tentar essa opção.



Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.