São Paulo, domingo, 09 de outubro de 2005

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Ciência em Dia

Nobel e os vira-latas

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

Não foi ainda desta vez. A semana do Prêmio Nobel terminou sem que um brasileiro fosse agraciado com a láurea maior do mundo científico. Mais uma alfinetada no peito sem medalhas da pesquisa nacional. Vergonha: um país sem Nobel, sem Oscar, sem papa e sem assento no Conselho de Segurança da ONU.


Quem diz que não se importa com o fato de o Brasil ganhar a láurea recorre à estratégia das uvas verdes


Documentos que vieram à tona recentemente revelaram que o cardeal mais próximo de ameaçar a eleição de Bento 16 era argentino. Para agravar a rivalidade, nossos vizinhos contam com três Nobel: Bernardo Alberto Houssay (Medicina, 1947), Luis F. Leloir (Química, 1970) e César Milstein (Medicina, 1984). O México, com um: Mario Molina (Química, 1995). A Venezuela, também: Baruj Benacerraf (Medicina, 1980).
É verdade que vários deles só nasceram na América Latina e fizeram ciência fora de suas pátrias. Pouco importa. Os brasileiros já ficariam bem satisfeitos com um Nobel nascido ou criado aqui -qualquer coisa. Alguns que aparentemente chegaram ou estão perto do prêmio recairiam nessa categoria: o físico Constantino Tsallis nasceu na Grécia, o também físico Mario Norberto Baibich, na Argentina, e o químico Otto Richard Gottlieb, na antiga Tchecoslováquia.
Para desespero do combalido amor próprio nacional, há vários exemplos de premiação também fora da América Latina. A Índia reúne três premiados. A China também. O Paquistão tem um. Israel, dois. África do Sul, três. Austrália, uns oito. É demais.
Agora sem brincadeira: receber um Nobel quer dizer alguma coisa? É claro que sim. Trata-se do prêmio científico mais prestigiado e cobiçado do mundo. Quem diz que não se importa com o fato de o Brasil ganhar ou não uma dessas láureas recorre à estratégia das uvas verdes. Se a notícia da semana fosse um Nobel brasileiro, estariam comemorando como se fosse a sexta Copa.
Por falar em futebol, essa obsessão nacional com o reconhecimento internacional revela algo mais sobre a alma brasileira: aquilo que Nelson Rodrigues chamava de "complexo de vira-lata". Padecemos de uma patologia grave da auto-estima. Mesmo com cinco Copas vencidas, a Seleção volta e meia ainda se encolhe diante da empáfia de argentinos e outros hermanos latino-americanos menores, ou de europeus "com saúde de vaca premiada".
Os comitês que decidem o Nobel devem saber disso e nos prejudicam. Talvez para se vingar dos 5 X 2 na final da Copa de 1958. Vai saber.
Os brasileiros, no entanto, são vira-latas por convicção -no futebol e na ciência. Na semana em que não ganhamos o Nobel, de novo, uma das mais impactantes pesquisas produzidas aqui nos últimos anos foi desqualificada de maneira unilateral pelo periódico científico "Cell", o mesmo que publicara o artigo de pesquisadores da Universidade de Brasília um ano antes.
O grupo liderado pelo baiano Antonio Teixeira discordou da nota que cancelava o artigo, mas a "Cell" seguiu em frente. A falta de reação da comunidade científica brasileira é tão chocante quanto essa sem-cerimônia.

Marcelo Leite é doutor em ciências sociais pela Unicamp, autor do livro "O DNA" (Publifolha) e responsável pelo blog Ciência em Dia (http://cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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