São Paulo, domingo, 09 de dezembro de 2007

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+ Marcelo Leite

A irresistível ascensão do boto


A "cultura do galanteio" nos mamíferos amazônicos


D iz a lenda amazônica que os botos saem do rio, se transformam em moços formosos e conquistam as donzelas, engravidando-as. Vaidoso, na forma humana leva sempre um chapéu na cabeça, supostamente para cobrir o orifício reminiscente da existência aquática.
Pode não ser verdade, mas serve como justificação para barrigas inexplicáveis pela ausência de marido. Bem ao modo da natureza social da Amazônia, onde bichos costumam virar gente, e vice-versa. O trânsito de jabutis, onças, peixes e botos entre o que nós, de fora, enxergamos como dois mundos é um verdadeiro carnaval. Mitos e causos à parte, não é que a ciência revela o que os amazônidas já sabiam? Botos machos são mesmo galantes. Como seus primos humanos, muitas vezes partem para atrair fêmeas com um ramalhete -não de flores, mas de plantas aquáticas. Essa imitação barata do comportamento humano é pesquisada por Vera Maria Ferreira da Silva, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e Tony Martin, do Serviço Antártico Britânico.
Não deixa de ser irônico que a instituição de Martin promova estudos em plena região equatorial. Nem, tampouco, que o estudo de Silva se torne público no Brasil por intermédio de uma revista de divulgação britânica, a "New Scientist", em reportagem de Emma Young.
Silva e Martin estudaram boto tucuxis (Sotalia fluviatilis) por três anos na região amazônica (esses botos de cor cinzenta também têm parentes nadando por quase toda a costa leste sul-americana, do Panamá a São Paulo). Avistaram mais de 6.000 grupos em Mamirauá, Tefé (oeste do Estado do Amazonas), diz a revista. Em mais de 200 dessas observações havia um indivíduo carregando objetos com o bico, como um maço de ervas ou um pedaço de pau. Em geral o portador era um macho. Os mesmos grupos sempre contavam com fêmeas em idade madura.
A dupla de biólogos constatou outras coisas interessantes. A ocorrência de agressões entre machos, na turma dos com-ramalhete, era até 40 vezes mais freqüente do que nos grupos restantes. Era forte a sugestão de que se trata de um comportamento sexual. Para comprovar sua hipótese, Silva e Martin buscaram o socorro da genética. Já obtiveram amostras de DNA de duas centenas de machos e estão comparando com as de filhotes. Os resultados -preliminares, ressalvou Martin à "New Scientist"- indicam que os mais assíduos portadores de ramos e paus seriam também os reprodutores mais bem-sucedidos.
Em português claro, o comportamento seria uma forma de exibicionismo -no bom sentido. Machos exibem objetos vistosos para se valorizar sexualmente aos olhos das fêmeas. Se não possuem uma cauda de pavão, a exuberância do mandril ou a potência de um jaguar, podem tentar a sorte com um chumaço de algas.
O curioso é encontrar o expediente só em alguns grupos isolados desses cetáceos. O padrão parece sugerir que o comportamento só faz parte do repertório de alguns bandos, disseminando-se neles, ou para outros, por imitação e aprendizado. Numa única e controversa palavra, cultura.
Não faz muito tempo, essa era uma noção que só fazia sentido aplicar a humanos. "Cultura", afinal, sempre foi entendida como o oposto de "natureza". A fronteira, tão cara às ciências humanas, foi ficando menos nítida com as sucessivas documentações, por vários grupos de pesquisa, do uso de ferramentas por outros primatas. Pelo visto, o boto está prestes a subir na escala social.


MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em Dia (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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