São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 2010

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+Marcelo Leite

Fenômeno editorial


Não é a primeira vez que a Elsevier se enrola com denúncias de falhas


Overdadeiro fenômeno da blogosfera não são os próprios blogs, mas os comentários que os leitores deixam neles. É cada uma...
A coluna da semana passada, "L.I.X.O.", sobre a portentosa produtividade do egípcio Mohamed El Naschie, teve trechos reproduzidos no blog Ciência em Dia. Apenas o suficiente para dar uma ideia da controvérsia sobre centenas de artigos e milhares de citações do pesquisador, boa parte no periódico de matemática aplicada editado por ele mesmo, "Chaos, Solitons and Fractals" (CSF).
E não é que houve gente saindo em sua defesa? Em lugar de ponderar as informações objetivas publicadas sobre as práticas de El Naschie, um leitor encontrou na blogosfera -e comprou por seu valor de face (zero)- uma teoria conspiratória: o egípcio seria vítima de pessoas acusadas de plagiar artigos do próprio El Naschie.
De fato existiu uma acusação de plágio, envolvendo artigo na revista de divulgação científica "Scientific American". É um rolo longo demais para desenrolar aqui. Além disso, em nada afeta os prodígios editoriais de El Naschie à frente do periódico "CSF".
Importa é saber que a casa editora de "CSF", o famoso conglomerado holandês Elsevier, desembarcou El Naschie. Decerto identificou coisas estranhas no periódico por ele fundado, mas do qual "se aposentou", segundo informa laconicamente a companhia.
A economia de palavras pela Elsevier faz suspeitar que tenha sido processada por El Naschie. Assim ocorreu com a revista britânica "Nature" e o jornal alemão "Die Zeit", que relataram o milagre da multiplicação das citações ("CSF" tem um fator de impacto 3, ou seja, em média cada artigo seu termina citado três vezes por outros trabalhos, um índice muito bom).
A empresa não encontrou ainda um novo editor para "CSF". Suspendeu temporariamente a recepção de novos artigos para "peer review" (auditoria de qualidade por outros pesquisadores que é tradição em publicações científicas). Apesar disso, a Elsevier continua cobrando 4.204 euros -mais de R$ 10 mil- da biblioteca que assinar a revista.
Não se trata de crucificar a Elsevier, "uma comunidade global de 7.000 editores de periódicos científicos, 70 mil membros de conselhos editoriais, 300 mil revisores e 600 mil autores" (como se apresenta na internet). Não deve mesmo ser fácil manter controle sobre 2.000 periódicos, entre eles muitos de renome inconteste, como "Cell" (fator de impacto 30).
A Elsevier também se vangloria de promover o mecanismo de "peer review" por 125 anos. Ora, tal sistema existe justamente para garantir a qualidade e a honestidade das pesquisas publicadas. Basta um "CSF" para deixar sob suspeita todo o acervo, assim como uma laranja podre pode pôr a caixa inteira a perder.
Não é a primeira vez que a editora se vê enrolada em denúncias de falhas graves no controle de qualidade. Em maio passado, a Elsevier reconheceu em nota que sua filial australiana havia publicado nada menos que seis periódicos científicos falsos, todos com títulos começando por "Australasian Journal of...".
Em realidade, eram compilações de artigos não inéditos patrocinadas pela empresa farmacêutica Merck (não por coincidência, favoráveis a produtos seus). O patrocínio não vinha explicitado nas publicações, editadas com aparência de periódicos médicos de verdade.
Um leitor mais afoito de blogs poderia concluir dos dois casos que a Elsevier faz parte de um complô para pôr sob suspeita toda a literatura científica. Para variar, estaria errado.


MARCELO LEITE é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br ). E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br


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