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São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

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EVOLUÇÃO

Experimento com seres de computador mostra que estruturas complexas podem surgir de várias mutações aleatórias

Micróbio digital reafirma idéia de Darwin

CLAUDIO ANGELO
EDITOR-ASSISTENTE DE CIÊNCIA

Criaturas feitas de bits, que nascem, se reproduzem e morrem dentro de um computador, acabam de confirmar um dos aspectos mais polêmicos da teoria da evolução: o surgimento de estruturas complexas, como o cérebro e o olho, decorre do acúmulo aleatório de pequenas mutações ao longo do tempo.
Estudando centenas de gerações dessas criaturas -na verdade, programinhas de computador cuja única função na vida é competir por energia para se replicar-, pesquisadores da Universidade Estadual de Michigan e do Caltech (Instituto de Tecnologia da Califórnia), nos EUA, cravaram mais um prego no caixão do chamado argumento do desígnio, segundo o qual haveria uma "intencionalidade" por trás da evolução da complexidade nos animais e, especialmente, nos humanos.
Mais ainda: o trabalho dos cientistas, publicado na última edição da revista científica "Nature" (www.nature.com), ajuda a esclarecer de vez um ponto da teoria da evolução por seleção natural sobre o qual seus próprios autores, os naturalistas britânicos Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1914), tinham algumas dúvidas.
Afinal, órgãos como o cérebro não poderiam ter surgido do nada, e sim em etapas. Difícil era provar isso, já que as formas intermediárias foram todas extintas e o registro fóssil é incompleto.
"A beleza de estudar evolução num computador é que não existem "elos perdidos" nos bancos de dados", disse à Folha o biólogo Richard Lenski, principal autor do estudo. Ele trocou as bactérias de seu laboratório pelo Avida (dllab.caltech.edu/avida), um software que simula, por meio de instruções digitais, o desenvolvimento e a evolução da vida.
Os avidianos são criaturas parecidas com bactérias eletrônicas. Eles têm um "genoma", representado por um conjunto de regrinhas matemáticas, se reproduzem assexuadamente, por bipartição (uma geração por segundo), estão sujeitos a erros (mutações) em cada cópia e competem num ambiente por comida -no caso, quantidades mínimas de eletricidade conhecidas como SIPs.

Para o alto e avante
O experimento do grupo de Lenski partiu de uma linhagem ancestral de avidianos com um genoma simplório, de 50 instruções. Durante a competição por SIPs e as sucessivas gerações, essas criaturas acumulavam diversas mutações aleatórias.
Algumas dessas mutações matavam as criaturas. Mas outras tornavam-nas capazes de desempenhar um conjunto de instruções lógicas que lhes permitiam ganhar energia extra, dando a elas e a suas "filhas" vantagens sobre as concorrentes.
No programa havia nove funções lógicas possíveis. A mais complexa delas era a que dava o maior bônus energético aos avidianos e também a mais difícil de adquirir ao longo da evolução.
No entanto, os pesquisadores observaram que, após 350 gerações, a maioria dos avidianos que evoluíram a partir do ancestral simples eram capazes de desempenhar a função mais difícil. O genoma também cresceu: de 50 para 83 instruções, em média.
Para chegar a desempenhar a função mais complexa, todos os avidianos passaram primeiro por funções mais simples, que davam uma recompensa menor.
Apenas uma mutação (mudança aleatória em uma das instruções do genoma) tornava alguns indivíduos que já desempenhavam as funções simples habilitados a executar a complexa. No entanto, remover qualquer mutação relacionada às outras funções eliminava a função mais difícil.
"A evolução geralmente pega emprestado algum traço existente e o usa para uma função nova. É bem mais fácil que inventar algo totalmente novo", disse Lenski.
O experimento também mostrou que, embora a evolução da complexidade fosse o caminho lógico, os avidianos perdiam a função mais complexa quando deixados num ambiente no qual não havia recompensa por ela.
"Isso explica em parte por que os seres humanos evoluíram, mas sempre haverá espaço para as bactérias", diz Lenski.
Embora a função complexa possa ser comparada, em teoria, à evolução do cérebro, Lenski diz que os avidianos ainda têm muito a evoluir: "Eles ainda não têm um bom papo e não sabem sambar", diz. "Não me importo em desligá-los depois dos experimentos."


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