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O enigma da biodiversidade na Amazônia
Escavações no fundo
de lagos questionam teoria
de que a floresta já foi
dividida em refúgios, ilhas
de mata cercadas por cerrado e caatinga, em que teria proliferado a atual
multidão de espécies
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Conservation International/Divulgação
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Callithrix manicorensis,
uma das duas espécies
de saguis anunciadas em
22 de abril de 2000
por pesquisadores ligados à ONG Conservation International;
o Brasil tem o maior número
de espécies de primatas
do mundo, 79,
das quais 62 vivem
na Amazônia |
Nicola Jones
da "New Scientist"
Era uma vez uma exuberante floresta verde, que
agora se espalha, amarela e rala, como uma savana sem fim. Apenas alguns arvoredos permanecem, como uma triste lembrança do que já foi a
floresta amazônica. Não, isso não é uma visão pessimista do futuro. É o que uma teoria há muito sustentada
descreve sobre as mudanças na região durante a Idade
do Gelo. E é uma noção -a chamada teoria dos refúgios- largamente aceita há décadas, porque ela explica
um dos grandes mistérios da ecologia: por que as florestas tropicais são tão incrivelmente diversificadas.
De acordo com essa teoria, toda vez que o mundo é
mergulhado em uma era gelada, os trópicos levam um
tranco. O ar frio proveniente dos pólos altera os padrões
dos ventos dominantes e suga toda a umidade da região
equatorial. As florestas tropicais recuam e morrem, os
papagaios e os macacos correm em busca das poucas
árvores que restam. Isso cria refúgios isolados, onde as
plantas e os animais evoluem longe de seus semelhantes. Quando, com o tempo, a floresta cresce de volta, está cheia de novas espécies -originando a mata amazônica cheia de diversidade que se conhece hoje. É uma
explicação simples e convincente.
O problema é que ela provavelmente está errada. Durante décadas, um homem tem cavado buracos na selva
para encontrar pólen antigo e testar a teoria. Ele concluiu que a região amazônica tem estado coberta por árvores até onde se perde de vista a linha do tempo. Sem
pradarias ou cerrados, apenas floresta. Agora, finalmente, o mundo está ouvindo sua mensagem. Isso lança os pesquisadores em busca de uma outra explicação
para a diversidade tropical. Também implica que a floresta tropical seja muito mais resistente a mudanças climáticas do que qualquer um jamais imaginou.
Seca
A floresta amazônica é o lugar de maior diversidade biológica na Terra. Cerca de 80 mil diferentes tipos
de planta e 30 milhões de espécies animais moram lá.
Em 1969, o geólogo alemão Jürgen Haffer propôs sua
idéia de morte periódica da mata no período glacial e de
ilhas de florestas para explicar essa extraordinária
abundância. Naquela época, a teoria se encaixou bem
com os estudos que mostravam que a África parecia ter
secado durante a última era do gelo. Mas a evidência de
seca na Amazônia não era nem de longe tão firme.
Paul Colinvaux, do Laboratório de Biologia Marinha
em Woods Hole, Massachusetts (EUA), decidiu testar a
teoria. Pôs na mala seu equipamento de perfuração e
partiu rumo à floresta. A idéia era simples: se ele conseguisse encontrar um ponto na Amazônia onde a terra
houvesse se acumulado em camadas durante milênios,
poderia perfurar o solo e ver se nele haveria pólen de
grama ou de árvores. Caso houvesse uma queda no pólen de árvores e um aumento no de grama que coincidisse com uma era glacial, a teoria de Haffer seria comprovadamente verdadeira.
A parte difícil foi encontrar um local adequado. Grande parte do chão da floresta é uma massa profunda de
raízes de árvores sobrepostas. A bacia amazônica é entrecortada por uma vasta rede de rios, que transportam
grande parte do solo recente. Boa parte do que resta é
erodido, formando uma argila dura e vermelha, desprovida de qualquer indício de pólen.
Colinvaux precisava de um lago existente há centenas
de milhares de anos, onde sedimentos e grãos de pólen
poderiam ter se acumulado no leito sem sofrer interferência. O lago Pata, situado sobre um morro 300 metros
acima da selva do noroeste do Brasil, parecia promissor.
A chuva carrega sedimentos quase constantemente, e a
água então penetra através de poros na pedra. Não há
nenhum rio saindo do lago para escoar a terra, e o morro é feito de pedra dura, sugerindo que o lago está lá há
um bom tempo.
"Você pega um barco até o ponto mais distante a que
chegam essas embarcações, cerca de três dias de viagem", explica Marc Bush, um ecólogo do Instituto de
Tecnologia da Flórida, EUA, e um dos companheiros de
Colinvaux na expedição de 1990 até o Pata. "Depois você pega um ônibus até o ponto mais distante a que ele
vai, cerca de meio dia de viagem. Em seguida, você entra em uma pequena canoa e é levado até a distância
máxima a que ela chega. Na sequência, você é largado
no sopé desse morro enorme, sem trilha alguma para
subi-lo." Colinvaux e sua equipe levaram três dias só
para conseguir levar o equipamento até o topo do morro. O chão da floresta era uma massa escorregadia,
cheia de raízes de árvores e de buracos com um metro
de profundidade. Sem falar nos mosquitos. "Ficamos lá
em cima por duas semanas. Foi horrível", diz Bush.
Valeu a pena. Os pesquisadores cavaram um buraco
com 6,5 metros de profundidade, e a datação de carbono mostrou que só o primeiro metro do cilindro de sedimento extraído tinha 30 mil anos, bem no cerne da última era glacial. Colinvaux e seus colegas passaram meses árduos catando grãos de pólen na lama, classificando-os em 450 famílias diferentes. O que eles encontraram tornou a hipótese do refúgio muito instável.
Havia bastante evidência de árvores e nenhum aumento na quantidade de pólen de grama. E, diz Colinvaux, uma vez que o pólen carregado pelo vento pode
viajar grandes distâncias, o seu sedimento não representava apenas a vegetação do morro. "Há lugares naquela escalada em que você pode ver a floresta se estendendo na sua frente até que ela desapareça na névoa do
horizonte", afirma Colinvaux. "Agora, se qualquer parte daquilo, no nosso raio de visão, tivesse sido cerrado,
eu aposto qualquer coisa que teríamos sido capazes de
vê-la no nosso registro."
Sombra sobre o refúgio
Os resultados, publicados na revista "Science" em 1996, lançaram uma sombra sobre a hipótese do refúgio, mas não provaram que
estava errada. Era remotamente possível que, por coincidência extraordinária, o lago Pata estivesse justamente localizado no meio de um refúgio. As árvores poderiam ter permanecido lá, enquanto o resto da floresta
encolhia. Então Colinvaux partiu rumo a outro lago, a
1.500 km do primeiro. A logística para essa viagem era
ainda pior, exigindo um helicóptero para entrar na floresta, com nenhum local de pouso mais próximo do
que uma caminhada de três dias, abrindo trilhas com
facão pela selva. Mas Colinvaux cavou outro buraco. De
novo, só encontrou árvores e mais árvores.
Os resultados ainda não foram publicados, mas, a
partir de suas conferências, Colinvaux já sabe o que os
críticos vão dizer: "Nossa, que estranho. Você encontrou mais um refúgio". "É ridículo", diz ele. "Eles mudam os limites do refúgio depois da nossa pesquisa."
Áreas mapeadas como cerrado são simplesmente remarcadas em verde para representar a floresta, diz ele.
Mas ele conta ainda com o que seria a mais convincente parcela de evidência, proveniente do último reduto de drenagem da floresta: o leito do mar na foz do
Amazonas. Em 1994, o Programa de Perfuração do
Oceano mandou um navio para lançar uma sonda no
sedimento a cerca de 400 km da boca do rio. Um cilindro extraído tinha mais de 35 metros de comprimento e
continha sedimentos de mais de 50 mil anos. Novamente, não houve um aumento de pólen de grama -apenas
árvores. Diz Colinvaux: "Mesmo que isso seja drenagem apenas das terras baixas, é exatamente onde os "refugistas" disseram ser mais provável haver savana".
Então, até onde recua a existência da floresta? No começo, Colinvaux não conseguia precisar. Ele tinha mais
de cinco metros de lama do fundo do lago Pata, mas não
conseguia datá-los com radiocarbono, pois isso é eficaz
apenas até cerca de 50 mil anos atrás. Então Bush notou
algo de estranho na área.
A análise química da lama profunda havia revelado
que a concentração de potássio variava em um padrão
complexo e estranho, em ziguezague. Depois de passar
anos quebrando a cabeça com o padrão, Bush percebeu
que esse ziguezague marcava um padrão de mudança
climática conhecido.
As eras glaciais mais recentes e várias outras mudanças no clima da Terra são geralmente atribuídas a instabilidades na órbita da Terra ao redor do Sol. Esse complicado balé celestial resulta numa linha tortuosa de
gráfico conhecida como ciclo de Milankovitch, que descreve a quantidade de luz do Sol que alcança a Terra em
várias latitudes, no correr do tempo. Bush percebeu que
os dados de potássio acompanhavam esse ciclo.
Por que os níveis de potássio deveriam agir como
marcadores de clima? A resposta aparentemente está
nas algas. O lago Pata é normalmente negro, por causa
do material orgânico dissolvido, e a luz penetra apenas
alguns centímetros na água. Quando ela é profunda,
impede que a vida cresça, pois são necessários nutrientes do fundo do lago e luz do topo. Quando o nível do lago é raso o suficiente, tanto luz quanto alimento se encontram, e a água assume tom esverdeado, em razão
das algas. Bush acredita que elas absorvam potássio da
água, preservado no sedimento quando morrem.
"É uma particularidade desse sistema em especial,
não é universal", afirma Colinvaux. Como o ciclo de Milankovitch é bem documentado, a correlação significa
que os pesquisadores podem datar para trás os sedimentos da totalidade de área pesquisada. O resultado
mostra que ele vai até 170 mil anos atrás -longe o suficiente para entrar na era glacial anterior. "Nós identificamos amostras de cima a baixo, e são todas de floresta", afirma Bush. "Você não vai encontrar intervalos de
cerrado." Para Colinvaux, isso encerra o caso.
Ainda há ceticismo
Outros ainda precisam ser
persuadidos. Colin Pendry, botânico do Real Jardim
Botânico de Edimburgo, é cético em relação aos dados
do pólen. "Paleontologia é uma ferramenta grosseira",
diz ele, apontando que as árvores não podem ser identificadas no nível da espécie. E mesmo dois bons sítios
não constituem um olhar extenso sobre uma área do tamanho da parte continental dos Estados Unidos. "Paul,
de fato, deixa transparecer que está tudo amarrado e
que ele tem a resposta", afirma Pendry. "Mas tudo ainda está muito incerto."
Mesmo assim, Pendry, assim como outros críticos de
Colinvaux, está começando a duvidar que a bacia amazônica tenha secado. "O pêndulo realmente está pendendo contra a teoria do refúgio", diz. Esse grupo está
tomando o partido do meio, acreditando que a floresta
tropical se tornou sazonalmente seca, cheia de leguminosas como a castanheira.
A objeção mais séria às conclusões de Colinvaux vem
de um estudo anterior da região da serra dos Carajás.
Em 1991, Maria Lúcia Absy (leia texto à direita) encontrou lá um forte sinal de pólen de grama, entre 24 mil e
11 mil anos atrás, período que cobre o auge da última
era glacial. Colinvaux descarta a idéia de que seja uma
área de cerrado entre refúgios. O pólen da grama, alega,
é consistente com a vida pantanosa das plantas que vivem até hoje naquele platô alto e relativamente seco.
Tradução de Alexandra Ozorio de Almeida
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