São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 2006

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Livro revê a célebre disputa entre Robert Peary e Frederick Cook na conquista do pólo Norte

Heróis sem nenhum caráter

Reprodução
Robert Peary (esquerda) e seu rival, Frederick Cook, possíveis descobridores do pólo Norte -ou não


CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

Os livros de história hoje costumam ser categóricos: o pólo Norte geográfico foi conquistado pelo americano Robert Edwin Peary, no dia 6 de abril de 1909. O que pouca gente lembra, no entanto, é que a conquista aconteceu não no gelo, mas no tapetão: para ter seu feito reconhecido, Peary teve de realizar uma monumental campanha de difamação contra um outro explorador, o também americano Frederick Cook.
Uma campanha pérfida, na qual nenhum truque sujo foi poupado. Pelo menos é o que sustenta o jornalista e meteorologista americano Bruce Henderson no livro "Norte Verdadeiro -Peary, Cook e a Corrida ao Pólo", de 2005, que acaba de ser lançado no Brasil.
Ao saber, voltando do Ártico, que Cook clamara ter estado no pólo quase um ano antes dele, em 21 de abril de 1908, Peary mobilizou aliados políticos, forjou relatos de esquimós -além do próprio diário de viagem-, ameaçou gente de confiança de Cook e, segundo Henderson, até pagou um ex-companheiro de alpinismo do rival para que desse falso testemunho sobre uma conquista anterior deste.
Embora Henderson tenha claramente um candidato favorito ao posto de provável verdadeiro conquistador do pólo, as histórias tanto de Peary quanto de Cook na época foram tão mal contadas que fica difícil escapar à conclusão de que a controvérsia jamais se encerrou, e de que possivelmente ambos os exploradores mentiram.
Isso não impede o autor de reconstituir de forma empolgante as trajetórias dos dois, que começaram unidas -Cook foi o médico de uma das primeiras expedições árticas de Peary, em 1891-, passaram por um divórcio gentil e terminaram na disputa mais amarga da história da exploração polar.
O livro é soberbamente pesquisado, tanto em fontes históricas já conhecidas como em registros mais ou menos esquecidos da imprensa do começo do século 20. A narrativa de Henderson também captura o leitor: é arrepiante sua descrição, logo no começo do livro, da penúria de Cook e seus dois companheiros esquimós ao voltar do pólo, enfrentando os horrores meteorológicos árticos. "Estavam no topo da cadeia alimentar, e abaixo deles não havia qualquer sinal de vida", escreve. "Metade de uma vela de cera e três copos de água quente constituíam uma refeição. Pedaços de couro de leão-marinho usados como capa impermeável foram cortados, fervidos e comidos durante vários dias."
Ao mesmo tempo, a obra reflete uma certa decepção do autor em não ter sido capaz de resolver a controvérsia. Essa frustração histórica faz Henderson resvalar para a pior das armas argumentativas norte-americanas: o julgamento moral.

Doutor virtude
Cook, um médico do Brooklyn filho de imigrantes alemães (Koch era o nome de seu pai, mudado para o seu cognato em inglês), aparece como um exemplo de virtude. Engenhoso desde criança, era conhecido nas Catskills (montanhas ao redor de Nova York) por fabricar os melhores trenós, habilidade que aperfeiçoaria depois incorporando conhecimentos dos esquimós para sua viagem ao pólo Norte.
Iniciado nas viagens ao Ártico por Peary, desde cedo ficou fascinado pelos esquimós. Aprendeu a língua e os costumes dos nativos da Groenlândia, inclusive um hábito fundamental: comer carne fresca de foca e outros animais selvagens.
Até então, os exploradores brancos só transportavam comida enlatada da Europa ou dos EUA, o que fez muitas expedições sucumbirem ao escorbuto. Observando que os nativos nunca adoeciam, Cook incorporou carne crua à sua dieta -e tentou, sem sucesso, incorporar também à de Peary, que se recusava a comer como um "selvagem".
Essa observação teria importantes desdobramentos futuros. Em 1897, o dr. Cook se engajou numa expedição européia à Antártida, comandada pelo belga Adrien de Gerlache. O navio de Gerlache ficou preso no gelo e a tripulação, sem querer, acabou sendo o primeiro grupo humano a invernar na Antártida. Não fosse a idéia de Cook de caçar pingüins, todos os homens de Gerlache teriam morrido de escorbuto. Entre eles um certo Roald Amundsen, que em 1911 descobriria o pólo Sul.

"Meu precioso"
Já "Bert" Peary é retratado como um tirano egoísta que se achava proprietário de tudo o que dissesse respeito ao Ártico e a quem só interessavam a fama e a glória desportiva de alcançar o pólo. "O pólo, finalmente!!! O prêmio de três séculos, meu sonho e minha ambição por 28 anos. Meu, afinal", escreveu em seu diário -na verdade, numa página solta inserida tempos depois com a data de 6 de abril de 1909.
Henderson não se cansa de enumerar os malfeitos de Peary. Primeiro, ainda no fim do século 19, teria descoberto locais na Groenlândia que expedições posteriores revelaram inexistentes. Um deles foi batizado "terra de Peary".
A atitude do explorador em relação aos esquimós também desperta revolta no autor (e certamente despertará em seus leitores). Peary convenceu os nativos, em troca de uma espingarda, a lhe revelar a localização de três meteoritos que eram a sua única fonte de metal. Roubou os três e tentou vendê-los ao Museu Americano de História Natural.
Os registros de Peary sobre a incursão final ao pólo Norte também não resistem ao escrutínio de Henderson, que aponta que, para ter chegado aonde disse que chegou, Peary precisaria ter viajado a 55 quilômetros por dia na etapa final -e mais difícil- do percurso. Isso quando, na parte "fácil", a velocidade máxima de deslocamento era de 24 quilômetros por dia.
A -justa- vilificação de Peary faz Henderson esquecer que a decisão de Cook de partir para o pólo foi tomada só depois que o médico soube da expedição do ex-companheiro, e que os supostos registros que provariam a conquista de Cook jamais foram encontrados.
É sempre tentador escrever a história dos vencidos, ainda mais com o intuito de reabilitar, às antevésperas do Ano Polar Internacional (2007), o explorador importante que Cook foi. Mas o Ártico não é lugar para clemências. O gelo do pólo Norte derreterá neste século sem revelar quem, afinal, colocou os pés ali pela primeira vez.

Norte Verdadeiro Peary, Cook e a Corrida ao Pólo
356 págs., R$ 49,90
de Bruce Henderson. Tradução Marta Miranda O'Shea. Ed. Objetiva



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