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São Paulo, terça-feira, 12 de agosto de 2003

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ANTROPOLOGIA

Estudo feito em duas cidades do pampa sugere que área do RS teve grande contribuição de genes indígenas

Gaúchos carregam DNA de índios extintos

REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Regiões do Rio Grande do Sul, o mais europeu dos Estados brasileiros, podem abrigar uma população quase tão indígena, do ponto de vista genético, quanto a Amazônia. Pesquisadores gaúchos analisaram o DNA de seus conterrâneos da região do pampa (planície com vegetação rasteira) e revelaram que mais da metade descende de mães índias -de tribos que sumiram há 200 anos.
Por enquanto, os dados se restringem a 52 pessoas de Bagé e Alegrete, no extremo sul gaúcho, perto da fronteira com o Uruguai. Se mais análises confirmarem a hipótese da geneticista Maria Cátira Bortolini, da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), o DNA dos atuais gaúchos pode fornecer a única janela para entender os charruas e minuanos, tribos do pampa que deixaram de existir no começo do século 19.
"As pessoas que nos forneceram as amostras de DNA não têm a menor idéia dessa origem indígena, tanto que elas se definem como descendentes de espanhóis e portugueses, ou simplesmente como gaúchos, porque a relação com os índios já está muito distante no tempo", diz Bortolini. Mesmo assim, 62% das pessoas estudadas revelaram ter ascendência indígena pelo lado materno -nível comparável ao que se encontra na Amazônia.
Dá para apontar com certeza a fonte materna desse sangue indígena porque o mtDNA (DNA mitocondrial) estudado pelos pesquisadores gaúchos só é transmitido de mãe para filho ou filha. Proveniente das mitocôndrias, as produtoras de energia química das células, só o mtDNA dos óvulos costuma passar para o embrião, não o dos espermatozóides -e por isso esse material genético funciona como um bom marcador da linhagem materna.
"Nós tínhamos uma idéia do que poderíamos encontrar, porque a região do pampa, assim como o Uruguai e tudo o que se costumava chamar antigamente de Banda Oriental, era ocupada por esses índios do grupo pampiano, principalmente charruas e minuanos", afirma Bortolini.
"Eram índios nômades, de planície, e parece que influenciaram muito o arquétipo do gaúcho, como o fato de serem cavaleiros, de usarem as boleadeiras e o chiripá [espécie de calça larga sem costuras, típica do pampa]."
Assim como os nativos das grandes planícies dos Estados Unidos, os charruas e minuanos capturaram cavalos trazidos pelos europeus e ofereceram considerável resistência à conquista de suas terras. Por isso, ganharam fama de rebeldes e aguerridos e a indesejada atenção dos colonos portugueses e espanhóis, que trataram de fazer tudo para exterminá-los.
A hipótese ligando os gaúchos a essas etnias foi testada na dissertação de Andréia Rita Marreiro, aluna de Bortolini na UFRGS. No estudo, o mtDNA dos moradores de Bagé e Alegrete foi comparado ao dos guaranis, outro importante povo indígena da região Sul, mas cuja identidade genética é bem mais conhecida que a dos obscuros charruas e minuanos.

Conexão chilena
O resultado, embora decididamente indígena, não batia com as características específicas do mtDNA guarani, nem com a distribuição dos grupos mitocondriais A, B, C, D (os mais comuns entre os nativos americanos) comum nesse povo.
"Entre os guaranis, o grupo mais comum é o A, com cerca de 70% das pessoas, enquanto o C e o D são muito baixos, por volta de 7%. Nessas amostras, a proporção de C e D é de 30% cada um", compara Bortolini. Aparentemente, o mtDNA dos gaúchos do pampa se assemelha muito ao dos mapuches, uma tribo que habita os Andes chilenos.
"Estamos nos deparando com o que se poderia chamar de genomas-testemunho, já que esse DNA mitocondrial pode ser o único testemunho que restou de povos desaparecidos, como os charruas", diz Bortolini. Por outro lado, a comparação com a região da serra Gaúcha, colonizada principalmente por italianos e alemães, revela que ali os genes indígenas foram praticamente substituídos pelos de europeus.


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