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+ Marcelo Gleiser
Faísca Vital
Mary Shelley mostra como a ciência influencia o imaginário
"Eu havia dissecado um sapo,
deitando-o sobre uma mesa onde encontrava-se
também uma máquina elétrica, distante do sapo. Quando um dos meus
assistentes acidentalmente encostou
a ponta do bisturi num nervo exposto
da perna do sapo, seus músculos contraíram-se. Meu outro assistente percebeu que uma faísca havia escapado
da máquina elétrica no momento em
que o bisturi encostou na perna do sapo. Repetimos o experimento. Encostei meu bisturi na perna do sapo e instruí meu assistente a gerar faíscas.
Quando elas surgiram, o animal entrou em convulsão como se estivesse
com tétano. [Texto adaptado.]"
Assim escreveu o anatomista italiano Luigi Galvani em um artigo sobre
suas experiências em torno de 1790,
que revelaram uma ligação entre eletricidade e movimento muscular. Galvani chegou a pendurar sapos mortos
em varais, com pequenos pára-raios
nas pernas para investigar se raios
surtiriam o mesmo efeito. Os sapos
dançaram como se estivessem vivos.
Seria, então, a eletricidade o segredo da vida eterna? Se sapos mortos
dançavam quando eletrificados, quem
sabe seria possível reanimar um cadáver do mesmo jeito?
O sonho da imortalidade é bem
mais antigo do que a ciência moderna.
As múmias egípcias são uma tentativa
de preservar o corpo para a jornada
que se inicia após a vida. O mito do
vampirismo atribui a imortalidade à
ingestão de sangue, com uma pequena
ajuda do Diabo, claro. Os alquimistas
da Idade Média buscavam pelo "Elixir
da Longa Vida", uma substância misteriosa capaz de prolongar indefinidamente a vida de uma pessoa.
Mas quando a possibilidade de sobrepujar o tempo finito que temos
vem da ciência, tudo muda. Mito passa a ser realidade, o sobrenatural passa a ser natural.
As descobertas de Galvani causaram uma sensação na Europa. Em
maio de 1816, a jovem Mary Shelley,
então com 17 anos, casada com o famoso poeta inglês Percy Shelley, foi
passar férias com amigos na casa de
outro grande poeta, Lord Byron, às
margens do Lago Genebra, na Suíça. O
ano de 1816 é conhecido como o "ano
sem verão": no norte dos EUA, por
exemplo, havia neve ainda em julho.
A Europa também sofreu com a
anomalia climática. O grupo de amigos acabou tendo que passar grande
parte do verão dentro de casa. Como
diversão, resolveram fazer um concurso de contos de terror. Mary Shelley havia acabado de ler sobre as experiências de Galvani. Segundo ela
conta, durante uma caminhada teve
uma visão, na qual um pálido doutor
via sua criatura fantasmagórica, um
cadáver feito de vários corpos diferentes, erguer-se semivivo, após ser eletrificado com raios numa tempestade.
Nascia então o clássico livro Frankenstein, na minha opinião o primeiro romance de ficção científica. Como
subtítulo, Shelley escolheu "Prometeu Moderno", usando o mito de Prometeu como suporte moral: na Grécia
Antiga, Prometeu foi o Titã que criou
o homem e ensinou-lhe a usar o fogo,
enfurecendo Zeus.
Como punição, Zeus acorrentou
Prometeu a uma rocha e ordenou que
uma águia devorasse seu fígado. Como
o Titã era imortal, o fígado se regenerava e o sofrimento se perpetuava dia
após dia: existem certos segredos que
não devem ser revelados aos homens.
A ligação entre Galvani e Mary Shelley é um exemplo extraordinário da
influência da ciência de ponta sobre a
imaginação popular. Idéias científicas
com dimensões míticas inspiram
cientistas e artistas. Deles aprendemos que devemos tomar muito cuidado com nossas invenções, para que
não se transformem em pesadelos.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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