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+ Marcelo Leite
O IPCC não é mais aquele
Existem críticas à economia das previsões climáticas
Há quase duas décadas escrevo
sobre aquecimento global. Esses anos todos serviram para
criar a convicção de que a fonte mais
confiável de projeções sobre o problema são os relatórios do IPCC, o Painel
Intergovernamental sobre Mudança
Climática posto em ação pela ONU
em 1988. Talvez seja hora de adicionar
um grão de sal a essa convicção.
Quem primeiro alertou para a possibilidade de haver algo questionável
no IPCC foi o economista José Eli da
Veiga, da USP. Há coisa de seis meses,
ouvi dele a intrigante afirmação de
que não identificara grandes nomes
da economia ambiental entre os autores dos textos do IPCC publicados no
com repercussão no começo do ano.
Para quem não está familiarizado
com o modo de produção dos relatórios do IPCC, é bom saber que mais de
2.000 pesquisadores de muitos campos e países participam. A cada meia
década, revisam toda a literatura científica sobre várias áreas de especialidade. Daí surgem seus cenários sobre
aumento de temperatura (pelo menos
mais 1,8C até 2100) e elevação do nível do mar (de 18 cm a 59 cm)
Como é mais ou menos óbvio, essas
projeções dependem de séries de dados econômicos sobre atividades
emissoras de gases do efeito estufa, de
energia a transportes e agricultura.
Prever quanto, onde e como a economia vai crescer é crucial para predizer
o futuro das emissões e, portanto, da
temperatura (que se eleva com o acúmulo de gás carbônico na atmosfera).
Pelo menos desde 2003 uma dupla
de especialistas -David Henderson
(ex-OCDE) e Ian Castles (ex-presidente do Birô de Estatísticas Australiano)- questiona premissas econômicas básicas dos cenários do IPCC.
Parece um mero detalhe técnico: o
painel usa preços de mercado nas
comparações de PIBs nacionais e sua
evolução, em lugar de valores expressos no conceito de "paridade de poder
de compra" (PPP, na sigla em inglês).
Sem entrar aqui na minúcia econômica, para Henderson e Castles isso
leva o IPCC a superestimar a diferença de riqueza entre países pobres e ricos em 1990, ano de referência dos cenários. Em conseqüência, também haveria distorções no crescimento estimado das economias desde então, o
que por sua vez tenderia a inflar as
emissões de gases-estufa.
Não é uma objeção trivial, longe disso. A dupla acusa o IPCC, porém, de
desconsiderá-la sumariamente desde
2003, apesar da receptividade inicial
demonstrada por Rajendra Pachauri,
que preside o painel.
Um apanhado recente da controvérsia (em inglês) se encontra no artigo "Governos e Questões de Mudança
Climática", publicado por Henderson
na edição de abril-junho do periódico
"World Economics" (www.world-economics-journal.com). O autor
denuncia ali que nenhum de seus artigos sobre o tema foi incluído entre
mais de 400 referências do "Quarto
Relatório de Avaliação" lançado neste
ano (AR4, como ficou conhecido), embora incluam um comunicado de imprensa em que Pachauri ataca o duo.
Henderson e Castles ponderam que
órgãos estatísticos internacionais recomendam o uso da metodologia PPP.
Defensores do IPCC retrucam que a
mudança não alteraria de modo significativo as projeções físicas (como a
temperatura) e que seria ônus dos críticos produzir modelos e estimativas
que demonstrem o oposto.
O IPCC tem a seu favor o argumento de que muitas medições desde 1990
confirmam as tendências delineadas
pelo órgão.
Essa pendenga não se resolverá tão
cedo, mas precisa vir a público -para
indicar que o IPCC não é bem um
evangelho que deve ser seguido por
todos cegamente.
MARCELO LEITE é autor do livro "Promessas do Genoma"
(Editora da Unesp, 2007) e responsável pelo blog Ciência
em Dia ( www.cienciaemdia.zip.net ).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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