São Paulo, domingo, 13 de janeiro de 2008

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+ Marcelo Leite

De onças e antas


Se o chamassem de anta, Aldo Rebelo deveria retorquir: "Anta, não, tapir"


Dado que João Pereira Coutinho estreou na última página da Ilustrada discorrendo sobre ouriços e raposas, esta coluna seguirá o exemplo versando sobre onças e antas. Um aforismo do grego Arquíloco reza que raposas sabem muitas coisas, enquanto o ouriço sabe uma só, mas muito importante. Coutinho o recuperou para registrar o paulatino sumiço dos ouriços, sem chegar a lamentar o fato. Creio que se incomodava ainda menos com a desaparição das antas, que afinal nada sabem.
Já o deputado federal Aldo Rebelo (PCdoB-SP), por exemplo, ficaria uma arara se o chamassem de anta. Como todo brasileiro e político sagaz, ele sabe muitas coisas. Um pouco menos ofensivo, vá lá, seria o epíteto de amigo da onça. Rebelo, mesmo tendo sido presidente da Câmara, é mais conhecido como o propositor do dia do Saci e do projeto de lei banindo palavras estrangeiras. Tende a ser ridicularizado por esse nacionalismo à Policarpo Quaresma. Mas ninguém reclama quando um grupo de pesquisa é nomeado Organization for Nucleotide Sequencing and Analysis por cientistas brasileiros, os amigos da Onsa.
Rebelo ao menos se incomoda com tais asneiras. Seu projeto, contudo, se enreda em dificuldades insolúveis -e nem se trata do óbvio atentado à liberdade de expressão, que ressoa a maoísmo. É nas palavras, mesmo, que se encontra o busílis.
Em seu artigo 2º, o projeto -que já pode ir a voto em plenário- ordena "difundir e valorizar a língua portuguesa" e "o estudo e a pesquisa sobre as variedades lingüísticas do português brasileiro". Talvez por se dar conta de que a língua portuguesa no século 16 era um idioma de imperialistas, Rebelo teve o cuidado de requalificá-lo como "brasileiro". Ora, o simples amálgama dos gentílicos na expressão já trai a tendência das línguas para a hibridação. Com e como as pessoas, palavras viajam, se misturam e se casam, numa barafunda que etimologistas nem sempre conseguem deslindar.
Por coerência radical, Rebelo deveria incluir no projeto artigo determinando que se dê preferência, no "português brasileiro", a termos de origem indígena. Afinal, foi sob a opressão do colonizador que desapareceu a língua tupi falada no litoral do pau-brasil. Se o chamassem de anta, Rebelo deveria retorquir: "Anta, não, tapir". Também seria obrigatório converter o amigo da onça em amigo do jaguar.
Aparências enganam: onça e anta são, de um ângulo estritamente nacionalista, evidentes estrangeirismos. "Onça" tem origem na raiz grega para "lince", talvez pelo italiano "lonza". Já "anta" viria do árabe "lamta", uma espécie de antílope. Nos dois casos ocorreu deglutição do "l", confundido com um artigo dispensável.
Em muitas línguas, inclusive latinas, onça é jaguar e anta, tapir. As duas palavras existem em "português brasileiro", mas além de pouco usadas soam, hum, importadas. Jaguar é nome de carro de luxo. Tapir só aparece em placa de zoológico.
São ambos vocábulos de origem tupi, ora veja. O significado original de "jaguar" varia conforme a fonte, de "devorador de gente" a "parecido com cachorro", mas sempre feral. Já o de "tapir" seria tão vago quanto o bicho, um termo genérico para mamífero, bicho grande. Fica aqui um aforismo para o deputado Aldo Rebelo: a anta não sabe nada, mas a onça sabe uma coisa só -jaguares atropelam, matam e comem bichos grandes, inclusive gente. Sua vida, como a da língua, depende de desconhecer regras e boas intenções.


MARCELO LEITE é autor de "Promessas do Genoma" (Editora da Unesp, 2007) e de "Clones Demais" e "O Resgate das Cobaias", da série de ficção infanto-juvenil Ciência em Dia (Editora Ática, 2007). Blog: Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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