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São Paulo, domingo, 13 de abril de 2003

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Ciência em Dia

Obesidade e efeitos não-pretendidos

Marcelo Leite
editor de Ciência

A descoberta em setembro de 1999 de uma molécula fundamental para a absorção de gorduras no intestino delgado, a FATP4, ajudou a elevar as ações da Millennium Pharmaceuticals, Inc. Afinal, ela trazia implícita a promessa de levar a uma droga capaz de controlar a praga da obesidade.
Aumentou também o prestígio de seu sócio na descoberta, Harvey Lodish, do Instituto Whitehead do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Ele é o autor principal de um livro-texto de biologia molecular muito popular nos Estados Unidos e famoso também pelo trabalho fundamental de seu laboratório sobre o hormônio eritropoetina, ou EPO (que estimula a produção de glóbulos vermelhos no sangue e se tornou uma forma de doping entre atletas).
Os parceiros entraram logo com um pedido de patente associado à descoberta, mas um trabalho publicado eletronicamente na segunda-feira passada pela revista "Proceedings of the National Academy of Sciences" (www.pnas.org) ameaça pôr areia no que poderia se tornar uma máquina de fazer dinheiro: segundo estudo da Escola Médica da Universidade Washington (Missouri, EUA), talvez seja má idéia bloquear a FATP4 para impedir a absorção de gordura.
A pesquisa do grupo de Jeffrey Miner começou bem longe da molécula da Millennium e do MIT, com uma estranha e rara mutação (defeito genético) de camundongos batizada como "wrfr". O nome vem de "wrinkle-free" (livre de rugas ou dobras), por causa do aspecto dos fetos de roedores afetados, que nasciam com uma pele grossa e esticada. Há uma doença genética semelhante -e também muito rara- em seres humanos, a dermopatia restritiva.
Os roedores wrfr morrem logo depois de nascer, pois têm grandes dificuldades para respirar. Outro problema grave deles é que sua pele defeituosa pára de funcionar como uma barreira entre organismo e ambiente: deixa escapar mais água do animal para fora do que deveria e deixa entrar substâncias tóxicas que precisaria barrar. Além disso, a mutação impede a produção normal de pêlos.
A pesquisa de Miner e colaboradores tinha por objetivo localizar onde ocorria a mutação, ou seja, qual o gene que ela afetava. Descobriram que a wrfr correspondia à inserção de um retrotransposon (espécie de vírus genômico, sequências autônomas de DNA que conseguem imiscuir-se entre trechos normais) no gene Slc27a4 -precisamente o trecho que contém a especificação genética necessária para a célula produzir a proteína FATP4, aquela que faz o transporte de gorduras pela parede do intestino.
Dito de outro modo: se um dia for desenvolvida uma droga contra obesidade baseada na limitação da FATP4, ela corre o risco de causar sérios danos à pele e aos cabelos. OK, se os danos fossem muito sérios, o medicamento nunca passaria das fases 1 ou 2 dos testes clínicos e seria arquivado antes de chegar ao mercado.
Pode não haver risco envolvido, mas o caso serve para ilustrar como é precário o raciocínio segundo o qual se torna cada vez mais fácil encontrar, com a ferramenta da biologia molecular, remédios que sejam verdadeiras balas de prata. O genoma e o metabolismo não são programas dos quais se podem retirar módulos inteiros, mas algo mais semelhante a ecossistemas, em que pequenas intervenções podem redundar em vastos efeitos não-pretendidos.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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