São Paulo, domingo, 13 de junho de 2004

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+ciência

Natureza humana?

New Yorker-9.mai.2004/France Presse
Militares e cães americanos ameaçam iraquiano na prisão de Abu Ghraib, subúrbio de Bagdá


STEVEN PINKER CRITICA CIENTISTAS SOCIAIS POR SUA RECUSA A INTEGRAR RAÍZES BIOEVOLUTIVAS DO COMPORTAMENTO, COMO A AGRESSIVIDADE, NA EXPLICAÇÃO DA MUDANÇA SOCIAL

Claudio Angelo
em Cambridge (EUA)

Debbie Ponchner
free-lance para a Folha, em Cambridge (EUA)

O psicólogo Steven Pinker é o único professor da Universidade Harvard (EUA) que recebe aplausos dos alunos a cada final de aula. Seu curso, "A Mente Humana", é um dos mais populares, e Pinker recentemente foi listado pela revista "Time" como uma das cem pessoas mais influentes do planeta. O curioso é que o cientista atraia tanta atenção falando de um tema até há pouco tempo maldito: a base biológica do comportamento.
Para Pinker, traços de personalidade como inteligência, tendência à agressividade e até preferências estéticas foram moldados na espécie humana pela evolução e, portanto, estão nos genes de cada indivíduo. Nenhum ser humano é uma tábula rasa, "uma massa disforme pronta para ser moldada pela cultura", afirma.
A afirmação pode nem soar tão chocante em tempos de Projeto Genoma. Mas há menos de 30 anos, quando o biólogo E.O. Wilson, também de Harvard, ousou propor uma teoria biológica para explicar a sociedade humana (a famigerada sociobiologia), foi acusado de fascista e paladino da direita por seus colegas. Idéias sobre a natureza humana, afinal, indicam que as pessoas têm capacidades diferentes e poderiam ser usadas para justificar opressão, racismo e machismo.
Pinker, um canadense de 50 anos cujos longos cabelos cacheados lhe dão ares de astro de rock, tem usado seu talento como escritor para argumentar em favor do determinismo darwinista, em best-sellers como "O Instinto da Linguagem" e "Como a Mente Funciona". Seu último livro, "A Tábula Rasa", lançado em maio no Brasil pela Companhia das Letras, desfecha um ataque minucioso aos opositores da idéia de uma natureza humana e explica por que não se deve ter medo dela.
De seu escritório em Harvard, para onde se mudou há seis meses após 20 anos no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), Pinker deu a seguinte entrevista.
 
Como o sr. começou a se interessar pelo estudo da linguagem e da mente?
Cheguei até a linguagem por meio do estudo da mente humana, algo em que eu já estava interessado quando era estudante de psicologia em Harvard, em meados dos anos 70. Meu foco principal era a psicologia cognitiva, que inclui o estudo da linguagem humana, e linguagem era a área da psicologia cognitiva que concentrava a maior parte das pesquisas. Mas meu maior interesse, sobre o qual fiz minha tese de doutorado, era o campo visual, entender como a mente humana percebe e interpreta objetos em três dimensões. Ao mesmo tempo em que trabalhava na minha tese, comecei a estudar a aquisição de linguagem em crianças. Pouco a pouco, essa área acabou tomando quase todo o meu tempo. Acho que meu interesse pela mente nasceu da curiosidade sobre a natureza humana. Eu nasci em 1954, portanto fui um rebento dos anos 60, mas sempre estive interessado no que acontecia à minha volta. Naquela época havia um grande debate a respeito da natureza humana. As pessoas são violentas por natureza? Nós somos todos egoístas? Há diferenças entre homens e mulheres? Essas perguntas todas estavam na cabeça de todo mundo, e a psicologia era a disciplina que poderia produzir as respostas.

Quando o sr. saiu de Harvard para o MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), um dos líderes no campo da lingüística era Noam Chomsky. Quais das suas descobertas contrariam as idéias de Chomsky?
Eu concordo com Chomsky quanto ao fato de a linguagem ser um sistema muito poderoso composto de palavras que podem se combinar em frases, de forma que a informação pode ser codificada graças aos significados das palavras e suas posições na oração. Creio que meu maior desacordo com Chomsky é o fato de eu pensar que a linguagem pode ser bem compreendida mais como uma adaptação evolutiva. É preciso indagar de onde vem a base para a habilidade inata do homem para a linguagem: tem de ser uma vantagem evolutiva, cuja finalidade é a comunicação. Chomsky acha que a evolução contribui pouco para a capacidade da linguagem. E, mais, ele diz que não tem sentido afirmar que a função da linguagem é a comunicação. Diz que a linguagem é usada para a comunicação da mesma forma que diferentes cortes de cabelo o são, mas que de forma alguma a comunicação é a função principal da linguagem.

Isso quer dizer que a linguagem não é uma adaptação evolutiva, mas um subproduto dela?
Pelo visto essa é a opinião dele. Acontece que não há jeito de saber...

Ele não menciona a palavra "evolução"?
Menciona, sim, mas para desancar a idéia. No ano passado, no entanto, ele escreveu um artigo na revista "Science", juntamente com Marc Hauser, no qual admite que a recursividade [a capacidade de formar frases infinitamente longas combinando elementos discretos], característica que diferencia a linguagem humana, pode, sim, ter sido moldada pela seleção natural, mas que ela teria evoluído por razões outras que a linguagem.


"A ciência continua sendo distorcida pela coloração política e emocional em torno da natureza humana"


Por que argumentar contra a negação da natureza humana, como o sr. faz em "A Tábula Rasa", numa época em que sistemas políticos baseados na visão utópica da sociedade parecem ter sido naturalmente eliminados?
Porque, por um lado, isso nos ajuda a explicar por que os sistemas políticos utópicos do século 20 falharam, e nem faz tanto tempo assim: a União Soviética caiu há apenas 13 anos, e esses sistemas permanecem vivos em certas partes do mundo, como Cuba e Coréia do Norte. Em parte é uma história intelectual que é preciso compreender. Por outro lado, a ciência continua sendo distorcida pela coloração política e emocional em torno da natureza humana. Às vezes se presume automaticamente que todas as diferenças entre os sexos são devidas à sociedade; ainda há gente que realiza estudos relacionando a atitude dos pais com a personalidade dos filhos, presumindo que isso dependa inteiramente da criação -algo que só pode estar certo quando se acredita numa tábula rasa, porque essa abordagem ignora que, além de cuidado e educação, os pais também dão genes aos filhos. Grande parte da pesquisa sobre crianças e formação da personalidade ainda está baseada na idéia de uma tábula rasa. Muito da forma como a psicologia está organizada continua se baseando na psicologia social, como se a psicologia fosse um conjunto de fenômenos que estão vinculados a todas as relações humanas. Qualquer biólogo diria que a sociopsicologia em si não existe, mas uma sociopsicologia para cada relação.

É então impossível tentar produzir igualdade num sistema social?
Igualdade tem dois significados. E aí depende do que você está falando: se igualdade significa que todos sejamos parecidos, ou se igualdade quer dizer que haja imparcialidade e justiça. Acho que é impossível atingir a igualdade nesse primeiro sentido. Mas igualdade no sentido de que não se penalize ou trate alguém de maneira diferente com base em sexo ou etnia, isso, sim, acho possível obter, mesmo que todos os indivíduos não ocupem o mesmo lugar [na sociedade].

Em "A Tábula Rasa", o sr. retoma a discussão sobre a influência da biologia na natureza humana no ponto em que Edward Wilson e Robert Trivers a deixaram nos anos 70, sob ataques acadêmicos diversos. O sr. acha que a sociedade está mais receptiva a essas idéias hoje?
Acho que sim, mas não graças à academia -essa continua devotada à idéia da tábula rasa, especialmente nas humanidades e nas ciências sociais. Tenho notado em meus alunos, no número de pessoas que lêem meus livros e assistem às minhas palestras, que essa tese não é tão assustadora quanto era nos anos 70.

Foi uma mudança na sociedade, ou isso se deve ao seu talento como comunicador?
Não. O terreno estava limpo antes. Em parte por causa da realidade. A evidência de que as pessoas são indistinguíveis ao nascer, que a inteligência tem uma componente hereditária, que homens e mulheres não são diferentes em todos os aspectos, que existem qualidades humanas universais. Também se deve a uma mudança na ideologia política dentro das universidades. Nos anos 70 a ideologia dominante era quase totalmente de esquerda, e agora há um espectro mais amplo, inclusive usamos a expressão "politicamente correto" com um certo tom pejorativo.

Se o sr. tivesse de determinar quanto da personalidade de um indivíduo se deve aos genes e quanto se deve ao ambiente, qual seria a sua resposta?
Essa pergunta não se coloca. É como perguntar que parte da área de um retângulo se deve à sua altura e que parte se deve ao seu comprimento.

O sr. menciona estudos que mostram que crescer no mesmo lar é muito pouco significativo para formação da personalidade. Então não se pode esperar que um filho adotivo se pareça em nada com seus pais?
Vários estudos chegaram a essa mesma conclusão quanto ao ambiente compartilhado e à influência dos pais na criação. A criança adotada pode no máximo ser similar à classe social da família que a adotou. Muitos desses estudos são feitos na classe média, e é a pressão dos pares que influencia mais a formação da personalidade, não a criação pelos pais adotivos.

Uma das críticas que se fazem à sociobiologia e à psicologia evolutiva é que não se pode subordinar as ciências sociais à biologia porque a biologia e a evolução só conseguem explicar o que não varia entre culturas. O sr. acha que a biologia pode explicar a imensa variabilidade cultural que existe?
Não no sentido de que diferentes culturas têm indivíduos com diferentes genes e que, por isso, têm uma história diferente; essa idéia é falsa. Eu acho que as ciências sociais nos permitirão compreender as diferenças entre as culturas e as mudanças históricas dentro de cada cultura. Mas essas mudanças não são arbitrárias, não caem do céu, elas ocorrem porque a psicologia das pessoas reage ao seu ambiente físico e social de uma certa maneira. Então, eu vejo essa questão como níveis diferentes de análise. As mudanças não podem ser explicadas somente por biólogos. Os cientistas sociais deveriam saber o bastante sobre padrões humanos e comportamento grupal para explicar por que as mudanças sociais ocorrem, em vez de apenas anunciar que elas ocorrem.

A agressividade é parte da natureza humana, por razões evolutivas. Então, a guerra é um resultado inevitável de ser humano?
A guerra não é uma categoria psicológica. É um fenômeno cuja freqüência tem caído nos últimos 50 anos, apesar das duas Guerras Mundiais. Acho que os impulsos biológicos sempre estarão conosco, mas isso não significa que vamos agir diante deles individualmente pelo homicídio ou coletivamente pela guerra. As estatísticas dizem que 75% dos homens e 62% das mulheres ocasionalmente pensam em matar pessoas com quem tiveram uma briga; quer dizer, os impulsos estão aí, mas, dependendo do contexto social, pode-se atuar de acordo com eles ou não.

Isso quer dizer que algo em nossa composição biológica que nos leva a ser agressivos será eliminado?
Não necessariamente, porque eu estou falando de história, de evolução cultural. Só seria biológico se as pessoas que têm esses impulsos agressivos deixarem menos descendentes do que aquelas que não são agressivas, e isso teria de acontecer em dezenas de milhares de anos, e em todo o planeta. Acho que o que vai acontecer é uma redução nos surtos de violência, porque, lembre-se, as pessoas podem ter um impulso muito forte para cometer violência, mas também têm um impulso muito forte para evitar que se cometa violência contra elas.

O sr. discute em suas aulas o experimento conduzido por Stanley Milgram na Universidade Yale, na década de 60, que mostra que pessoas comuns podem agir com sadismo sob ordens. Os abusos cometidos pelos EUA na prisão de Abu Ghraib, Iraque, são uma reprodução do experimento de Milgram na vida real?
Ainda não temos dados suficientes a respeito, mas provavelmente não. O interessante, aqui, é que os guardas não receberam ordens para agir assim. Parece que o fizeram por iniciativa própria. A analogia mais próxima seria um experimento desenvolvido em Stanford chamado o experimento da prisão. Esse experimento mostrou que, se alguém distribui aleatoriamente os papéis de prisioneiros e guardas entre estudantes [no caso, os voluntários do experimento], eles levam seus papéis tão a sério que os "guardas" começam a torturar os "prisioneiros". Parece que pôr alguém numa situação humilhante faz com que os outros o percebam como algo menos que humano, facultando os maus-tratos aos superiores. A humilhação e a degradação põem as pessoas em outra categoria, psicologicamente.

Nós gostaríamos de voltar à compreensão da mente humana: o sr. acredita que é possível que o ser humano chegue um dia à compreensão total da mente, ou há algo dentro de nós que nos impede de entendê-la por inteiro?
Acho que haverá, sim, limites ao que poderemos entender intuitivamente, não porque somos nós estudando a nós mesmos, mas porque somos nós estudando qualquer coisa.

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