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MICRO/MACRO
O Universo em uma biblioteca infinita
MARCELO GLEISER
especial para a Folha
No conto "A Biblioteca de Babel", o grande escritor argentino Jorge Luis Borges constrói
uma réplica literária do Universo, criando tanto uma homenagem às descobertas científicas de
sua época como um desafio quase que irônico aos cosmólogos
modernos. A Biblioteca de Babel
é diferente de qualquer outra biblioteca; nela, encontramos todos os livros que já foram escritos e aqueles que ainda vão ser,
assim como volumes contendo
todas as possíveis combinações
de letras nos arranjos mais aleatórios possíveis. Tudo o que já
foi pensado, ou que será pensado, e tudo o que não faz sentido
pode ser encontrado em algum
volume da absurda biblioteca.
O conto levanta questões conceituais que são muito relevantes
no estudo da cosmologia. As primeiras frases revelam a intenção
de Borges de parodiar a cosmologia: "O Universo (que alguns
chamam de biblioteca) é composto de um número indefinido,
talvez infinito, de galerias hexagonais". Hexagonais como uma
infinita colméia, que retrata a
homogeneidade do espaço; todas as galerias são equivalentes,
nenhuma sendo mais importante do que a outra. A luz que ilumina a biblioteca é insuficiente,
deixando o leitor sempre parcialmente às escuras, como
quando vislumbramos o céu noturno e seus mistérios, que nos
são revelados em parte. Ou, talvez, a penumbra da biblioteca
seja uma alegoria à escuridão
que há entre objetos do cosmos.
Como a biblioteca é o Universo, nada pode existir fora dela.
Portanto, os leitores, assim como o narrador, são parte da biblioteca. Como podemos compreender algo do qual nós somos
parte? Os bibliotecários tentam
em vão decifrar os infinitos significados do seu mundo, condenados a um conhecimento finito. Esse fato pode ser identificado como uma analogia ao conhecimento científico: como a
biblioteca contém todos os livros, deve haver um compêndio
que resume todos os outros livros. Mas, se esse livro existe, a
biblioteca é completa, deve haver um outro livro que descreve
todos os livros e mais esse compêndio, e assim por diante, em
uma regressão infinita. Portanto, é impossível encontrar um livro que contém todos os outros,
pois sua existência necessariamente implica a existência de
um outro livro que o inclui. A
busca por uma síntese do conhecimento está fadada ao fracasso.
Já que parte da biblioteca é
acessível, os bibliotecários "sofrem de perigosas ilusões do
quanto é realmente compreensível". Ver uma parte, ou mesmo
várias partes, não significa ver o
todo, ou poder ver o todo.
Os habitantes da biblioteca
enumeram os livros e calculam
probabilidades, mas não conseguem se apropriar de seu significado como um todo. Esse mistério estará para sempre fora do alcance. Para Borges, a ciência jamais conseguirá desvendar os
mistérios mais profundos da natureza, simplesmente porque somos parte do mistério.
O conto (e também outros, como "O Aleph", que espero comentar em outra ocasião) revela
uma profunda preocupação com
a representação científica do
mundo, não só no questionamento dos limites do conhecimento, como também em um
nível mais reducionista; mesmo
que todos os livros sejam escritos usando as 23 letras do alfabeto, o conhecimento dessas letras
pelos habitantes da biblioteca
não revela muito da natureza
fundamental de seu Universo.
Será que Borges está criticando
a busca pelos tijolos elementares
da matéria da física de partículas? Essas partículas são o "alfabeto" com o qual toda a "escrita" do mundo natural é feita. Será que essa busca é necessariamente fadada ao fracasso? A resposta depende da ambição de cada um. Para os que querem descobrir tudo com a ciência, talvez
as alegorias de Borges sejam
mais do que só alegorias. Eu me
contento em circular por regiões
parcialmente iluminadas da biblioteca, encontrando, aqui e ali,
mais um volume que me revele
uma pequena parte do grande e
impossível mistério.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica
do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e
autor do livro "Retalhos Cósmicos".
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