São Paulo, quinta-feira, 15 de maio de 2003 |
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GEOFÍSICA Premissa da ficção científica é revisitada por pesquisador americano, que compara custo ao de missões espaciais Cientista quer sonda no núcleo da Terra
SALVADOR NOGUEIRA DA REPORTAGEM LOCAL Um cientista planetário do Caltech (Instituto de Tecnologia da Califórnia) está propondo a construção de uma sonda que pode tornar realidade uma das idéias mais fascinantes entre as do escritor francês Júlio Verne: "Viagem ao Centro da Terra". "Ao centro, não", corrige polidamente David Stevenson, por telefone. "Ao núcleo. Proponho uma forma de atingirmos o núcleo da Terra. É diferente." A inspiração científica para Stevenson escrever sua audaciosa proposta, publicada hoje na revista "Nature" (www.nature.com), veio de anos de estudos do interior da Terra. Mas o gatilho veio da ficção científica -mais precisamente do filme "O Núcleo - Missão ao Centro da Terra" (The Core), atualmente em cartaz. "Fui convidado para criticá-lo, e de fato ele mostra coisas totalmente inverossímeis -é fantasia" diz Stevenson. "Mas então pensei em escrever algo sobre uma proposta viável. Fiz as contas que estão no estudo em um dia." O cientista não espera que todos aceitem a sugestão. "Para ser honesto, eu nem sei dizer se é mesmo possível. Espero que a maioria dos meus colegas vá rir. Estou tranquilo com isso. A principal meta do artigo era provocar as pessoas, provocá-las a pensar." De fato, soa como provocação. O título do artigo é "Mission to Earth's core - a modest proposal" (Missão ao núcleo da Terra - uma proposta modesta). É uma referência a um famoso texto satírico de Jonathan Swift (1677-1745), autor de "As Viagens de Gulliver", em que o autor sugeria combater o problema da pobreza na Irlanda com as pessoas comendo os próprios filhos. "Foi um jeito de tentar avisar o leitor de o que se segue tem um intuito tanto sério como jocoso." A sugestão de Stevenson é menos radical que a de Swift. Ele propõe a construção de uma grande fissura num ponto bem escolhido da superfície da Terra, com uns 300 metros de profundidade, e então despejar uma quantidade considerável de ferro derretido em seu interior. O valor oscilaria entre 100 mil e 1 milhão de toneladas, o que Stevenson aponta casualmente como "apenas" uma hora ou uma semana da produção mundial de ferro. A sonda com instrumentos viajaria envolvida no metal líquido, que, atraído pela gravidade, iria abrindo caminho pela crosta terrestre a uma velocidade de cinco metros por segundo (18 km/h). Segundo Stevenson, a pressão faria com que a fenda fosse se fechando acima do ferro derretido, evitando a criação de um buraco ligando a superfície ao núcleo -embora o cientista confesse em uma versão comentada do estudo, publicada em seu website (www.gps.caltech.edu/faculty/stevenson/coremission/), que não há garantias no momento de que o buraco vá se fechar por completo. Caso a fenda não fosse gradativamente tapada, o experimento poderia até criar um vulcão artificial, o que não parece uma boa idéia. "Isso inviabilizaria a missão", diz o pesquisador. Caso se converta em realidade, a missão poderia obter mais informações sobre as regiões internas da Terra. Enviar as informações de lá debaixo, entretanto, são outros 500. Comunicação por rádio é inviável. Stevenson sugere o uso de ondas sonoras -pequenos abalos sísmicos propagados pela própria massa da Terra e então captados na superfície por meio de sismógrafos. Para Marcelo Sousa de Assumpção, geofísico do IAG (Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas) da USP, a parte da comunicação seria razoavelmente simples. "Atualmente já seria até possível detectar esses sinais, essas pequenas vibrações", diz. Ele também não antevê problemas para desenvolver a sonda a partir de uma liga que não fosse derretida pelo calor. Talvez o maior desafio de engenharia esteja na construção da fratura de 300 metros na superfície e a posterior injeção de milhares de toneladas de ferro derretido. Stevenson, em seu artigo, o compara ao Projeto Manhattan, que montou a primeira bomba atômica dos EUA nos anos 1940. Com um tom irônico, o americano comenta o quanto já foi gasto na exploração do espaço e quão pouco foi investido para explorar o interior da Terra. "Essa proposta é modesta, comparada ao programa espacial, e pode parecer irrealista apenas porque pouco esforço foi devotado a ela", conclui. "Chegou a hora da ação." Próximo Texto: Idéia lembra clássico de Júlio Verne Índice |
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