São Paulo, domingo, 15 de junho de 1997.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CIÊNCIA
A identidade do americano

Estudos mostram que colonização deve ter sido mais complexa do que se pensava


MARTA MIRAZÓN LAHR
especial para a Folha

Quem foram os primeiros americanos? Esta pergunta pode ter várias respostas, dependendo de que fonte de informação for usada para reconstruir o passado. Para explorar a biologia e filogenia de populações pré-históricas, pode-se usar duas fontes de informação: os genes das populações descendentes delas ou os seus restos físicos, os esqueletos fossilizados.
Os genes, por meio dos seus diversos marcadores, nos informam sobre as relações de parentesco entre populações e, por meio dessas relações, junto com os diferentes níveis de diversidade, próprios de cada grupo, pode-se fazer inferências históricas a respeito de quanto tempo teria transcorrido desde a separação das populações.
Porém os genes nada podem nos dizer sobre as adaptações físicas das populações no passado, suas características morfológicas, seu estado de nutrição, a velocidade com que as crianças cresciam, ou a idade com que os velhos morriam. Toda essas informações incríveis sobre populações pré-históricas estão contidas nos fósseis.
Mas vamos voltar à pergunta inicial. Quem foram os primeiros americanos? Um número grande de arqueólogos argumenta há muitos anos que a identidade dos primeiros grupos humanos a ocupar as Américas é a da cultura chamada Clóvis, que teria chegado à América do Norte cerca de 11.500 anos atrás por uma ponte de terra que unia o Alasca à Sibéria.
Em 1986, três pesquisadores, J. Greenberg, da Universidade Stanford, C.G. Turner, da Universidade Estadual do Arizona, e S. Zegura, da Universidade do Arizona, formularam um modelo que propôs que a América teria sido colonizada por três ondas migratórias.
A primeira, de uma população de paleoíndios Clóvis, relacionada aos habitantes do nordeste asiático (norte da China, Coréia, Japão), que teria dado origem a todas as tribos indígenas da América do Sul, Central e grande parte daquelas da América do Norte.
A segunda migração teria originado o grupo de tribos que hoje falam as línguas Na-Dene, nômades da região do noroeste da América do Norte. Por último, uma terceira migração teria dado origem aos esquimós da região periártica.
Ao longo dos anos, diversos sítios arqueológicos supostamente mais antigos que os 11.500 anos do começo da cultura Clóvis foram achados e descritos, principalmente na América do Sul.
Mas em nenhum caso foi possível esclarecer todas as dúvidas sobre a qualidade da datação e/ou a qualidade dos artefatos líticos como indicadores da presença humana, e a data de entrada ao redor de 11.500 anos atrás se manteve.
Essa situação mudou nos últimos anos. Um exame minucioso de toda a evidência proveniente do sítio de Monte Verde (Chile), foi aceita por diversos arqueólogos como prova de que grupos de caçadores habitaram a América do Sul 12.500 anos atrás.
Essa data pode não parecer significativamente discordante dos 11.500 anos da cultura Clóvis, mas seu significado é imenso.
Por um lado, aumenta a janela de tempo da entrada na América para um período entre 15 mil e 14 mil anos até 11.500, quando os grupos Clóvis entraram. Segundo, leva a questão de por que não encontramos restos desses primeiros imigrantes na América do Norte, por onde eles devem ter necessariamente passado. Por último, as datas indicam que mais de uma população teria feito a travessia da Sibéria para a América, o que levanta questões sobre a identidade dos ancestrais dos ameríndios e sobre a sua unidade biológica.
Sítios arqueológicos como o Monte Verde são importantíssimos para estabelecer os horizontes cronológicos e a diversidade cultural das primeiras populações americanas. No entanto, é por meio dos fósseis que as questões de afinidade e diversidade biológica desses primeiros grupos estão sendo exploradas, e os dados paleontológicos estão sendo significativos para a mudança da teoria sobre os primeiros povos da América.
Dois grupos de pesquisas, dirigidos por G. Steele, nos EUA, e por W. Neves, no Brasil, têm reexaminado e analisado estatisticamente a evidência fóssil dos paleoíndios.
Eles constataram que os primeiros americanos não possuíam as características típicas dos povos mongolóides, observadas em populações do nordeste asiático e nos índios americanos atuais.
Ambos chegaram a conclusões semelhantes: os paleoíndios se originaram de uma população generalizada na Ásia, ou seja, de um grupo que ainda não teria se especializado morfologicamente na direção mongolóide.
Os resultados foram apoiados por dois estudos da morfologia dentária de fósseis paleoíndios, levados a cabo por J. Powell, dos EUA, e R. Haydenblit, de Israel, que mostraram que os fósseis apresentam um padrão morfológico distinto daquele que C. Turner encontrou nos índios atuais (que é o mesmo dos chineses, coreanos e japoneses), já que os paleoíndios se assemelham aos grupos que hoje habitam o sudoeste asiático. Meus estudos sobre a evolução das populações humanas modernas na Ásia mostram que teria havido, entre 20 mil e 10 mil anos atrás, vários grupos na região próxima à Sibéria que poderiam ter sido ancestrais dos paleoíndios.
Porém, um fóssil encontrado no ano passado em Kennewick, no Estado de Washington, juntamente com um estudo de R. Jantz, da Universidade do Tennessee, sobre o material fóssil de Palaeoindian Spirit Cave Mummy, nos dão uma indicação de quão complexa a colonização da América deve ter sido.
A interpretação morfológica de ambos os indivíduos, examinados por diversos pesquisadores, é inequívoca: os fósseis têm maior afinidade com populações caucasianas do que com mongolóides. Todos esses dados sugerem que deve ter existido, em algum momento do Pleistoceno tardio, uma população de origem caucasiana ao longo do norte da Eurásia e, possivelmente, noroeste da América.
Esses dados fornecem duas evidências importantes. Por um lado, confirmam mais uma vez as diferenças observadas entre os paleoíndios e os índios recentes. Por outro, indicam que é provável que não uma ou duas populações entraram na América entre 15 mil e 10 mil anos atrás, mas várias.
Além do fascínio que despertam cada vez que novos insights surgem no estudo da evolução humana, os novos achados ressaltam a importância de conjugar fontes de informação.
A genética e, até certo ponto, a linguística histórica dos povos hoje existentes têm nos permitido reconstruir o processo histórico de diferenciação das populações da Terra. Porém, esses dados só podem reconstruir a história dos sobreviventes do processo evolutivo.
A história completa tem de incluir aqueles grupos que, por razões diversas, não deixaram descendentes, mas que, certamente, tiveram o seu papel nos processos de colonização dos continentes e diferenciação dos povos.
A história dessas populações, como os nossos paleoíndios, provém da informação contida nos fósseis.


Marta Mirazón Lahr é antropóloga biológica do Instituto de Biociências da USP e autora do livro "The Evolution of Modern Human Diversity" (Cambridge University Press).




Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do Universo Online ou do detentor do copyright.