São Paulo, domingo, 15 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ciência em Dia

Botucatu, Bauru e a globalização meia-bomba

Marcelo Leite
editor de Ciência

Foi duro conter um impulso de irritação ao ler aquele despacho da agência de notícias: "LONDRES (Reuters) - Gêmeos brasileiros idênticos, exceto por um defeito de nascença, ajudaram cientistas americanos e britânicos a identificar um gene falho que causa uma forma hereditária de lábio e palato fendidos" (problema conhecido como lábio leporino, porque a fenda lembra algo da feição de uma lebre).
Como havia editado no mesmo dia reportagem de Reinaldo José Lopes sobre a pesquisa, sabia que brasileiros tinham contribuído com algo mais do que uma malformação facial para o trabalho, publicado na seção de cartas da revista científica americana "Nature Genetics" (www.nature.com/ng). Entre os 26 autores do artigo havia dois da Unesp de Botucatu (Renata Ferreira de Lima e Danilo Moretti-Ferreira) e um da USP de Bauru (Antonio Richieri-Costa). Estiveram ainda envolvidos no projeto de 17 anos outros pesquisadores de mais três países, Alemanha, Colômbia e França, igualmente omitidos pela Reuters.
É verdade que, em apenas 36 linhas, seria impraticável a agência relacionar todos os autores. Tampouco a reportagem da Folha o havia feito, limitando-se a registrar a colaboração com americanos e europeus -com isso omitindo, também ela, a participação dos colombianos.
Além disso, é correto que o autor principal (o último da lista, segundo o costume científico), Jeffrey Murray, e os primeiros nomes (daqueles que fazem o trabalho mais pesado) são todos ou dos EUA -Iowa, para ser preciso- ou do Reino Unido. Renata Ferreira de Lima é a primeira não-anglo-saxã a aparecer, num ainda destacado oitavo lugar.
Tanto Moretti-Ferreira quanto Murray, consultados por esta coluna, explicaram a omissão com a tendência de órgãos de imprensa de privilegiar o aspecto ou conexão local das notícias. Uma regra tão trivial quanto legítima da técnica jornalística, diga-se. Embora não tenha registrado a procedência dos autores no título, a reportagem da Folha o fez implicitamente no sobretítulo (ou linha-fina): "Cientistas da USP e da Unesp ajudam a achar DNA ligado a defeito facial".
Esse viés pode explicar, mas não justifica, a omissão da Reuters -que está longe de ser um órgão de impacto local. Afinal, os brasileiros não contribuíram só com os gêmeos atendidos no Hospital de Pesquisa e Reabilitação de Lesões Lábio-Palatais de Bauru, mas com algo mais sutil e valioso: o lampejo de que sua situação -gêmeos geneticamente idênticos (mesma sequência de DNA), mas com fenótipos diversos (um com lábio fendido, outro normal)- poderia acelerar a localização do gene afetado.
Como disse Murray à coluna, foi um dos itens inéditos do trabalho: "As contribuições dos cientistas brasileiros, que reconheceram como poderiam ser importantes esses gêmeos, foram críticas para encontrar o gene no momento em que o fizemos (acabaríamos por encontrá-lo algum dia, sem eles, mas talvez não antes de um ano, no mínimo). Além disso, o valor dos gêmeos é aumentado pelo fato de terem ensinado que podemos empregar esses gêmeos idênticos "não-idênticos" para achar outras doenças com um componente genético".
Arriscaria dizer que há algo mais nessa omissão. Ela atesta nossa incapacidade (dos jornalistas, quero dizer) de pensar nalguma forma de globalização que não perpetue a subordinação de quem fala inglês com sotaque a algum "boss" gringo -mesmo que ele seja da periferia científica norte-americana.
Está na hora de começar a pensar que, sem a sacada de Botucatu e Bauru, a turma de Iowa talvez nunca tivesse publicado seu trabalho na "Nature Genetics".


Texto Anterior: Micro/Macro - Marcelo Gleiser: O grande dilema de Einstein
Próximo Texto: saiba +
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.