|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros
ANÁLISE
Viés cerebral nos faz encarar o começo da existência como instante mágico
HÉLIO SCHWARTSMAN
ARTICULISTA DA FOLHA
A polêmica em torno do
aborto pode ser resumida numa única frase: quando tem
início a vida do ser humano?
É uma pergunta enviesada. Ela reflete mais a obsessão humana com essências
filosóficas do que a expressão de categorias naturais.
Colocando de outra forma,
o que ocorre na natureza, em
particular na biologia, são
processos, no mais das vezes
contínuos. É por um viés de
nossos cérebros que gostamos de pontuá-los com instantes mágicos, que marcariam fronteiras que consideramos relevantes entre, por
exemplo, o vivo e o não vivo,
o humano e o não humano.
Do ponto de vista da natureza (se é que a expressão faz
sentido), porém, essas distinções são irrelevantes. A diferença entre um ser humano e
um repolho roxo são alguns
nucleotídeos fora de lugar.
Já a tara humana por essências parece ser inata. Estudos mostram que, com
apenas nove meses, bebês já
são capazes de inferir qualidades invisíveis de objetos.
Depois de apresentados a
caixas musicais, eles esperam que todos os objetos com
a mesma forma toquem algo.
Para Paul Bloom, psicólogo de Yale, o essencialismo
tem valor adaptativo. Ao fazer-nos observadores atentos, ele evita, por exemplo,
que confundamos alface
com cicuta, o que, claro, ajuda na sobrevivência.
Só que produz também alguns efeitos colaterais adversos, como o racismo e a astrologia. Está ainda envolvido
em nosso gosto por filosofia,
por literatura e opera em alguns dos mecanismos cerebrais responsáveis pelo fenômeno da religiosidade.
O fato de o essencialismo
existir com força em nossas
mentes não implica, porém,
que ele corresponda a fatos
reais. A própria dificuldade
em dizer quando a vida começa mostra que a pergunta
pode estar mal formulada. E,
mesmo que esteja, constatá-lo dificilmente mudará nossa
forma de pensar o aborto em
termos essencialistas.
Texto Anterior: Cientistas apontam 5 inícios para a vida Próximo Texto: Aborto natural é comum nos primeiros meses Índice | Comunicar Erros
|