São Paulo, sexta-feira, 15 de outubro de 2010

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ANÁLISE

Viés cerebral nos faz encarar o começo da existência como instante mágico

HÉLIO SCHWARTSMAN
ARTICULISTA DA FOLHA

A polêmica em torno do aborto pode ser resumida numa única frase: quando tem início a vida do ser humano?
É uma pergunta enviesada. Ela reflete mais a obsessão humana com essências filosóficas do que a expressão de categorias naturais.
Colocando de outra forma, o que ocorre na natureza, em particular na biologia, são processos, no mais das vezes contínuos. É por um viés de nossos cérebros que gostamos de pontuá-los com instantes mágicos, que marcariam fronteiras que consideramos relevantes entre, por exemplo, o vivo e o não vivo, o humano e o não humano.
Do ponto de vista da natureza (se é que a expressão faz sentido), porém, essas distinções são irrelevantes. A diferença entre um ser humano e um repolho roxo são alguns nucleotídeos fora de lugar.
Já a tara humana por essências parece ser inata. Estudos mostram que, com apenas nove meses, bebês já são capazes de inferir qualidades invisíveis de objetos. Depois de apresentados a caixas musicais, eles esperam que todos os objetos com a mesma forma toquem algo.
Para Paul Bloom, psicólogo de Yale, o essencialismo tem valor adaptativo. Ao fazer-nos observadores atentos, ele evita, por exemplo, que confundamos alface com cicuta, o que, claro, ajuda na sobrevivência.
Só que produz também alguns efeitos colaterais adversos, como o racismo e a astrologia. Está ainda envolvido em nosso gosto por filosofia, por literatura e opera em alguns dos mecanismos cerebrais responsáveis pelo fenômeno da religiosidade.
O fato de o essencialismo existir com força em nossas mentes não implica, porém, que ele corresponda a fatos reais. A própria dificuldade em dizer quando a vida começa mostra que a pergunta pode estar mal formulada. E, mesmo que esteja, constatá-lo dificilmente mudará nossa forma de pensar o aborto em termos essencialistas.


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