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OPINIÃO
Clonar ou não clonar, eis a questão
LYGIA DA VEIGA PEREIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Alguns pseudocientistas vêm
propondo, nos últimos meses, a
geração de clones humanos. Com
a realização de um seminário para
juristas em Brasília, nesta semana,
o assunto vem recebendo crescente atenção também das autoridades e do público brasileiro.
Governos de diversos países, incluindo os EUA, criaram leis proibindo a clonagem e o uso de embriões humanos para pesquisa.
Em abril o assunto voltou à tona
com a declaração de dois médicos
-Severino Antinori e Panos Zavos- de que vão iniciar experiências de clonagem humana.
Essas declarações geraram diversos manifestos de repúdio por
parte dos mais renomados cientistas do mundo, incluindo Ian
Wilmut, criador da ovelha Dolly.
A clonagem como forma de reprodução é comprovadamente
um fracasso, e é consenso na comunidade científica que não deve
ser realizada em seres humanos.
Mas os defensores da clonagem
reprodutiva já estão causando um
grande mal, pois geraram um medo da clonagem em geral, que
corre o risco de ser totalmente
proibida nos EUA. Temos de separar o joio do trigo. Existe uma
distinção importante entre a clonagem reprodutiva, que visa à geração de um indivíduo inteiro a
partir de uma célula por reprodução assexuada, e a clonagem terapêutica, conjunto de aplicações
científicas e terapêuticas dessa
mesma tecnologia.
No processo de clonagem, uma
célula de identidade e função já
definidas consegue ter acesso a
toda a informação genética contida no seu núcleo. Se pudermos
entender e controlar esse mecanismo, poderemos um dia regenerar órgãos e tecidos danificados. Afinal, as células de um fígado com cirrose ainda têm a receita
para fazer um fígado saudável.
Nos últimos anos houve um
enorme investimento na pesquisa
com células-tronco. Em geral, célula-tronco (CT) é uma célula que
tem a capacidade de se transformar em diferentes tipos de célula.
Por exemplo, as CT do sangue,
encontradas na medula óssea,
produzem todos os tipos de célula
sanguínea, como hemácias e leucócitos. No entanto, apesar de as
CT serem fonte de diferentes tipos
de células, ainda não se sabe se
podem se diferenciar em qualquer tipo -como neurônios.
Uma classe especial de CT são as
chamadas células-tronco embrionárias. Como o nome sugere, elas
são derivadas de um embrião nos
estágios iniciais do desenvolvimento. Nos primeiros cinco dias
desse processo, as células do embrião ainda não decidiram se vão
virar células de sangue, pele ou
músculo. Por isso, ainda têm o
potencial de se diferenciar em
qualquer desses tipos celulares.
As CT embrionárias são derivadas desses embriões de cinco dias,
multiplicadas em laboratório e
podem ser induzidas a se transformar em células sanguíneas,
musculares, de pele, secretoras de
insulina e até neurônios. Elas têm
um imenso potencial terapêutico.
O grande problema é que essas
células são derivadas de embriões
excedentes de processos de fertilização in vitro. Tais embriões, normalmente descartados com consentimento do casal, são destruídos para extrair as CT embrionárias. Para algumas pessoas, isso
significa destruir uma vida, o que
seria inaceitável.
Essa é uma questão delicada,
que envolve aspectos morais, culturais e religiosos. Vale lembrar
que estamos falando de um embrião de cinco dias, basicamente
um conglomerado amorfo de células, que se fosse gerado no ventre de uma mulher teria somente
20% de chance de se desenvolver
em um bebê. Uma coisa se pode
garantir: aquele embrião excedente trará muito mais benefícios
na forma de CT embrionárias do
que numa lata de lixo.
Outro argumento contra o uso
de células-tronco embrionárias é
o medo de que seja criado um comércio de embriões. Seguindo essa argumentação, não deveriam
ser permitidas transfusões de sangue nem doações de órgãos, pois
isso também poderia degenerar
em comércio desses.
A proibição cega invariavelmente leva ao atraso da ciência e
da melhora da qualidade de vida.
Precisamos, sim, de legislação e
vigilância, para introduzir o desenvolvimento das células-tronco
embrionárias no Brasil sem ferir
direitos nem deveres.
Lygia da Veiga Pereira, 34, é professora
doutora do Departamento de Biologia
do Instituto de Biociências da USP
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