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Estudo polêmico defende Homo habilis como primeiro membro da linhagem humana
DISCUSSÃO DE FAMÍLIA
Antônio Gaudério/Folha Imagem
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Arqueólogo do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP segura réplica de crânio do Homo habilis (à esq.) e a de seu provável descendente, o Homo ergaster, ao lado de esqueleto humano moderno |
Reinaldo José Lopes
free-lance para a Folha
Pobre Homo habilis. Se alguém se arriscasse a
comparar a disputa entre as várias espécies de
hominídeo pela honra de ser o primeiro membro
do gênero humano (Homo) com um campeonato de futebol, essa criatura de 2,5 milhões de anos seria o
equivalente de um time que já foi grande e cheio de glórias, mas que ultimamente anda amargando a segunda
divisão. Quando a espécie nasceu para a ciência, nos
idos de 1964, até o latim do nome científico era auspicioso: habilis, explicavam seus descobridores, queria
dizer "capaz, jeitoso, mentalmente hábil, vigoroso".
A alcunha elogiosa nasceu do fato de que as mãos do
espécime pareciam ideais para manipular objetos com
precisão idêntica à de seus parentes modernos -e, de
fato, ao lado dos fósseis estavam os mais antigos instrumentos feitos por mãos hominídeas. De lá para cá, porém, os paleoantropólogos se deliciaram em destruir a
fama de esperto do H. habilis. O cérebro era pequeno
demais, as ferramentas, toscas, os fósseis, duvidosos.
Como golpe de misericórdia, quiseram até transformá-lo em Australopithecus habilis e colocá-lo porta afora
do gênero ao qual pertence o Homo sapiens.
Por sorte, o combalido hominídeo jeitoso parece ter
encontrado um paladino à altura. E seu defensor, o paleoantropólogo francês Yves Coppens, do Collège de
France, em Paris, quer o primata de volta à primeira divisão em grande estilo. De acordo com ele, o Homo habilis teria sido o primeiro ancestral da humanidade a
deixar a África, terra natal de toda a linhagem, e se
aventurar na Europa e até na China -dando origem a
novas espécies durante a longa jornada.
Credenciais não faltam a Coppens, um cientista de 68
anos dado a brincadeiras -"serão 69 em agosto deste
ano, se os meus pais não me enganaram", diz. Caçando
fósseis de hominídeos na África desde 1960, ele é um
dos "pais" da célebre fêmea de australopiteco "Lucy" e
participou da equipe que revelou ao mundo no ano
passado o que pode ser o mais antigo hominídeo -Sahelanthropus tchadensis, ou simplesmente "Toumaï",
com seus 6 milhões ou 7 milhões de anos.
Migração compulsória
"A idéia de que os hominídeos ficavam se entreolhando na África e dizendo uns
aos outros "Ah, temos primeiro de nos transformar em
Homo erectus para poder sair daqui" não faz o menor
sentido", diz Coppens. "Assim que se transformaram
em Homo, eles começaram a migrar -na verdade,
acredito que eles quase foram obrigados a migrar", especula o francês, recusando a idéia de que o H. habilis
não passasse de mais um australopiteco.
A mudança não é trivial. Embora dominassem de longa data a arte de andar sobre dois pés (como o esqueleto
de Lucy, uma Australopithecus afarensis de 3,2 milhões
de anos, deixa claro), os australopitecos passavam um
tempo razoável nas árvores, tinham um cérebro de dimensões não exatamente invejáveis e, ao que tudo indica, estavam engatinhando no uso de instrumentos. Como os chimpanzés, deviam no máximo escolher uma
ou outra pedra mais jeitosa para quebrar frutas de casca
dura ou para atingir predadores.
Com o Homo habilis, porém, a coisa muda de figura,
diz Coppens. "A construção de ferramentas talvez comece um pouco antes, mas se estabelece sem sombra de
dúvida com ele." A primeira tradição cultural humana,
aliás, empresta seu nome (olduvaiense) da garganta Olduvai, na Tanzânia, onde os primeiros fósseis da espécie foram encontrados.
O cérebro da criatura teria sido não apenas maior que
o de seus antecessores, mas mais complexo, com lobos
mais desenvolvidos e maior irrigação sanguínea -traços que podem ser inferidos graças a moldes feitos da
parte interna do crânio. "E essas características devem
ter sido acompanhadas por um novo comportamento:
maior curiosidade, maior mobilidade e, se é que podemos falar de algo nesse sentido, maior inteligência",
afirma o pesquisador francês.
Quase tão importante quanto a mudança cerebral teria sido o par de pernas novo em folha do H. habilis.
"Lucy, que eu conheço na intimidade, tinha postura
ereta, mas gastava uma energia tremenda para andar
longas distâncias em duas pernas", argumenta Coppens. O Homo habilis, por sua vez, seria o primeiro hominídeo a passar todo o seu tempo no chão, talvez caçando, ou pelo menos seguindo os grandes predadores
para se alimentar da carne que eles deixavam para trás.
"Quando você é um caçador, não pode se dar ao luxo
de ficar ali parado, mastigando sementes. Tem de seguir
a presa", ressalta Coppens. Assim, passo a passo, na trilha das manadas de gazelas e em meio à savana que a
mudança climática estava fazendo se espalhar pelo Velho Mundo, um sujeito de 1,50 m adquiriu têmpera de
explorador e, um belo dia, se viu bem longe de casa
-para Coppens, fora da África.
O pesquisador cita o sítio europeu de Dmanisi, na
Geórgia, como uma indicação de que o primeiro Homo
poderia ter feito a viagem. Lá, os fósseis têm 1,8 milhão
de anos, embora pertençam ao Homo ergaster -para
alguns uma espécie distinta, para outros apenas uma
forma arcaica do Homo erectus, hoje considerado o primeiro hominídeo a deixar o berço africano do grupo.
Coppens, contudo, espera fósseis mais antigos, com 2
milhões de anos ou mais, e tem suas razões para isso. É
que artefatos de pedra com essa idade e pertencentes à
cultura olduvaiense, a mais célebre invenção do Homo
habilis, estão sendo encontrados em sítios arqueológicos como Chillac e Saint-Eble, do maciço Central (região dos Pirineus franceses). Colegas chineses do paleoantropólogo atribuem idade semelhante a instrumentos cortadores e raspadores olduvaienses achados
em seu país. "As ferramentas são realmente muito
boas, mas a questão é saber se elas têm mesmo a idade
que parecem ter", diz Coppens. "De qualquer maneira,
estou esperando que outros sinais do Homo habilis
apareçam. Essa expansão claramente vai mais fundo no
tempo do que nós costumávamos supor."
O pesquisador francês sugere que esse provável processo de migração foi acompanhado por mudanças
gradativas nos próprios exploradores hominídeos.
"Não é que tenha havido primeiro uma movimentação
de Homo habilis e depois outra de Homo erectus", afirma Coppens. "Creio que o H. habilis migrou e, ao migrar, ele se tornou H. ergaster, que se tornou H. erectus,
e assim por diante. Existe uma continuidade de traços e
de distribuição de traços que sugere isso."
Disputa entre espécies
O paleoantropólogo brasileiro Walter Neves, que trabalhou no sítio de Dmanisi
no ano passado com o pesquisador georgiano David
Lordkipanidze, diz que as ferramentas encontradas lá
são claramente olduvaienses. "Acho que o Coppens está certo em alertar para o fato de que coisas mais antigas
podem aparecer", afirma.
"E o material de lá indica alguns indivíduos minúsculos. Mas não me parece que isso signifique que mais de
uma espécie conviveu no mesmo lugar, porque eles foram encontrados muito próximos uns dos outros", diz
Neves, para quem os achados georgianos podem exigir
que se repense toda a classificação do gênero Homo, inclusive a separação de Homo habilis e Homo ergaster
em espécies distintas.
"A idéia de que o Homo habilis possa ter sido o primeiro hominídeo fora da África tem recebido muita
atenção recentemente por causa dos fósseis de Dmanisi", diz o pesquisador norte-americano Bill Leonard, da
Universidade Northwestern. Leonard é um dos autores
de um modelo que tenta explicar o pioneirismo do Homo erectus usando o desenvolvimento da caça -um
dos principais argumentos de Coppens.
"Seja como H. habilis tardio ou H. erectus primitivo,
para mim está claro que esses hominídeos mostram
uma tendência para o aumento do cérebro, maior tamanho corporal e uma redução dos dentes e da face que
sugere uma mudança em sua dieta", afirma Leonard.
"A linhagem Homo aparentemente estava evoluindo
muito rápido, entre 2 milhões e 1,5 milhões de anos
atrás. Como consequência disso, não é estranho que
nós tenhamos uma certa dificuldade para saber quem é
quem", conclui o pesquisador.
Como quase tudo na história da evolução humana, o
veredicto final deve demorar. Coppens não se abala: diz
que gostaria de investigar o passado remoto dos parentes mais próximos dos hominídeos (os chimpanzés,
que praticamente não têm registro fóssil) e revela uma
de suas frases preferidas como pesquisador, quase o seu
bordão: "Sempre espere o inesperado".
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