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São Paulo, domingo, 16 de fevereiro de 2003

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Estudo polêmico defende Homo habilis como primeiro membro da linhagem humana

DISCUSSÃO DE FAMÍLIA

Antônio Gaudério/Folha Imagem
Arqueólogo do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP segura réplica de crânio do Homo habilis (à esq.) e a de seu provável descendente, o Homo ergaster, ao lado de esqueleto humano moderno


Reinaldo José Lopes
free-lance para a Folha

Pobre Homo habilis. Se alguém se arriscasse a comparar a disputa entre as várias espécies de hominídeo pela honra de ser o primeiro membro do gênero humano (Homo) com um campeonato de futebol, essa criatura de 2,5 milhões de anos seria o equivalente de um time que já foi grande e cheio de glórias, mas que ultimamente anda amargando a segunda divisão. Quando a espécie nasceu para a ciência, nos idos de 1964, até o latim do nome científico era auspicioso: habilis, explicavam seus descobridores, queria dizer "capaz, jeitoso, mentalmente hábil, vigoroso". A alcunha elogiosa nasceu do fato de que as mãos do espécime pareciam ideais para manipular objetos com precisão idêntica à de seus parentes modernos -e, de fato, ao lado dos fósseis estavam os mais antigos instrumentos feitos por mãos hominídeas. De lá para cá, porém, os paleoantropólogos se deliciaram em destruir a fama de esperto do H. habilis. O cérebro era pequeno demais, as ferramentas, toscas, os fósseis, duvidosos. Como golpe de misericórdia, quiseram até transformá-lo em Australopithecus habilis e colocá-lo porta afora do gênero ao qual pertence o Homo sapiens. Por sorte, o combalido hominídeo jeitoso parece ter encontrado um paladino à altura. E seu defensor, o paleoantropólogo francês Yves Coppens, do Collège de France, em Paris, quer o primata de volta à primeira divisão em grande estilo. De acordo com ele, o Homo habilis teria sido o primeiro ancestral da humanidade a deixar a África, terra natal de toda a linhagem, e se aventurar na Europa e até na China -dando origem a novas espécies durante a longa jornada. Credenciais não faltam a Coppens, um cientista de 68 anos dado a brincadeiras -"serão 69 em agosto deste ano, se os meus pais não me enganaram", diz. Caçando fósseis de hominídeos na África desde 1960, ele é um dos "pais" da célebre fêmea de australopiteco "Lucy" e participou da equipe que revelou ao mundo no ano passado o que pode ser o mais antigo hominídeo -Sahelanthropus tchadensis, ou simplesmente "Toumaï", com seus 6 milhões ou 7 milhões de anos.

Migração compulsória
"A idéia de que os hominídeos ficavam se entreolhando na África e dizendo uns aos outros "Ah, temos primeiro de nos transformar em Homo erectus para poder sair daqui" não faz o menor sentido", diz Coppens. "Assim que se transformaram em Homo, eles começaram a migrar -na verdade, acredito que eles quase foram obrigados a migrar", especula o francês, recusando a idéia de que o H. habilis não passasse de mais um australopiteco. A mudança não é trivial. Embora dominassem de longa data a arte de andar sobre dois pés (como o esqueleto de Lucy, uma Australopithecus afarensis de 3,2 milhões de anos, deixa claro), os australopitecos passavam um tempo razoável nas árvores, tinham um cérebro de dimensões não exatamente invejáveis e, ao que tudo indica, estavam engatinhando no uso de instrumentos. Como os chimpanzés, deviam no máximo escolher uma ou outra pedra mais jeitosa para quebrar frutas de casca dura ou para atingir predadores. Com o Homo habilis, porém, a coisa muda de figura, diz Coppens. "A construção de ferramentas talvez comece um pouco antes, mas se estabelece sem sombra de dúvida com ele." A primeira tradição cultural humana, aliás, empresta seu nome (olduvaiense) da garganta Olduvai, na Tanzânia, onde os primeiros fósseis da espécie foram encontrados. O cérebro da criatura teria sido não apenas maior que o de seus antecessores, mas mais complexo, com lobos mais desenvolvidos e maior irrigação sanguínea -traços que podem ser inferidos graças a moldes feitos da parte interna do crânio. "E essas características devem ter sido acompanhadas por um novo comportamento: maior curiosidade, maior mobilidade e, se é que podemos falar de algo nesse sentido, maior inteligência", afirma o pesquisador francês. Quase tão importante quanto a mudança cerebral teria sido o par de pernas novo em folha do H. habilis. "Lucy, que eu conheço na intimidade, tinha postura ereta, mas gastava uma energia tremenda para andar longas distâncias em duas pernas", argumenta Coppens. O Homo habilis, por sua vez, seria o primeiro hominídeo a passar todo o seu tempo no chão, talvez caçando, ou pelo menos seguindo os grandes predadores para se alimentar da carne que eles deixavam para trás. "Quando você é um caçador, não pode se dar ao luxo de ficar ali parado, mastigando sementes. Tem de seguir a presa", ressalta Coppens. Assim, passo a passo, na trilha das manadas de gazelas e em meio à savana que a mudança climática estava fazendo se espalhar pelo Velho Mundo, um sujeito de 1,50 m adquiriu têmpera de explorador e, um belo dia, se viu bem longe de casa -para Coppens, fora da África. O pesquisador cita o sítio europeu de Dmanisi, na Geórgia, como uma indicação de que o primeiro Homo poderia ter feito a viagem. Lá, os fósseis têm 1,8 milhão de anos, embora pertençam ao Homo ergaster -para alguns uma espécie distinta, para outros apenas uma forma arcaica do Homo erectus, hoje considerado o primeiro hominídeo a deixar o berço africano do grupo. Coppens, contudo, espera fósseis mais antigos, com 2 milhões de anos ou mais, e tem suas razões para isso. É que artefatos de pedra com essa idade e pertencentes à cultura olduvaiense, a mais célebre invenção do Homo habilis, estão sendo encontrados em sítios arqueológicos como Chillac e Saint-Eble, do maciço Central (região dos Pirineus franceses). Colegas chineses do paleoantropólogo atribuem idade semelhante a instrumentos cortadores e raspadores olduvaienses achados em seu país. "As ferramentas são realmente muito boas, mas a questão é saber se elas têm mesmo a idade que parecem ter", diz Coppens. "De qualquer maneira, estou esperando que outros sinais do Homo habilis apareçam. Essa expansão claramente vai mais fundo no tempo do que nós costumávamos supor." O pesquisador francês sugere que esse provável processo de migração foi acompanhado por mudanças gradativas nos próprios exploradores hominídeos. "Não é que tenha havido primeiro uma movimentação de Homo habilis e depois outra de Homo erectus", afirma Coppens. "Creio que o H. habilis migrou e, ao migrar, ele se tornou H. ergaster, que se tornou H. erectus, e assim por diante. Existe uma continuidade de traços e de distribuição de traços que sugere isso."

Disputa entre espécies
O paleoantropólogo brasileiro Walter Neves, que trabalhou no sítio de Dmanisi no ano passado com o pesquisador georgiano David Lordkipanidze, diz que as ferramentas encontradas lá são claramente olduvaienses. "Acho que o Coppens está certo em alertar para o fato de que coisas mais antigas podem aparecer", afirma.
"E o material de lá indica alguns indivíduos minúsculos. Mas não me parece que isso signifique que mais de uma espécie conviveu no mesmo lugar, porque eles foram encontrados muito próximos uns dos outros", diz Neves, para quem os achados georgianos podem exigir que se repense toda a classificação do gênero Homo, inclusive a separação de Homo habilis e Homo ergaster em espécies distintas.
"A idéia de que o Homo habilis possa ter sido o primeiro hominídeo fora da África tem recebido muita atenção recentemente por causa dos fósseis de Dmanisi", diz o pesquisador norte-americano Bill Leonard, da Universidade Northwestern. Leonard é um dos autores de um modelo que tenta explicar o pioneirismo do Homo erectus usando o desenvolvimento da caça -um dos principais argumentos de Coppens.
"Seja como H. habilis tardio ou H. erectus primitivo, para mim está claro que esses hominídeos mostram uma tendência para o aumento do cérebro, maior tamanho corporal e uma redução dos dentes e da face que sugere uma mudança em sua dieta", afirma Leonard. "A linhagem Homo aparentemente estava evoluindo muito rápido, entre 2 milhões e 1,5 milhões de anos atrás. Como consequência disso, não é estranho que nós tenhamos uma certa dificuldade para saber quem é quem", conclui o pesquisador.
Como quase tudo na história da evolução humana, o veredicto final deve demorar. Coppens não se abala: diz que gostaria de investigar o passado remoto dos parentes mais próximos dos hominídeos (os chimpanzés, que praticamente não têm registro fóssil) e revela uma de suas frases preferidas como pesquisador, quase o seu bordão: "Sempre espere o inesperado".


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