São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004

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Ciência em Dia

Ontogenia e filogenia

Marcelo Leite
editor de Ciência

Arrisco afugentar leitores, com os palavrões do título, na confiança de que terão visto em algum momento do passado escolar uma ilustração como essa mais à direita. Sim, é verdade que embriões de vertebrados têm muita coisa em comum, sobretudo nos primeiros estágios de desenvolvimento, como mostra a figura. E a coisa toda parece ter uma misteriosa base molecular, ou seja, isso está "inscrito" no DNA dessas espécies.
A descoberta de David Haussler e seu grupo, da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, foi notícia há nove dias, inclusive nesta Folha. Eles encontraram 481 trechos de DNA -a maioria fora de genes- com pelo menos 200 letras químicas (bases nitrogenadas) coincidentes nos genomas de homens, ratos e camundongos, que chamaram de "elementos ultraconservados" (pois a simples taxa normal de mutação tornaria extremamente improvável que isso acontecesse).
O que a reportagem de minha autoria omitiu foi a hipótese de que esses trechos fósseis e misteriosos de DNA de vertebrados estejam diretamente implicados no que se chama de regulação dos genomas e, mais especificamente, na regulação daqueles genes cruciais para o desenvolvimento inicial de cada indivíduo (ontogenia). Sendo tão fundamentais, o organismo teria muito a perder caso ocorresse neles a lenta acumulação de mutações chamada evolução -daí a sua conservação ímpar, mesmo em meio ao surgimento de espécies ao longo de centenas de milhões de anos (filogenia).
Quem chamou minha atenção para a relação entre a descoberta de Haussler e a conhecida semelhança no desenvolvimento de vertebrados -resumida na célebre frase "a ontogenia recapitula a filogenia"- foi o geneticista brasileiro Marcelo Nóbrega, que trabalha no Laboratório Nacional Lawrence Livermore, dos EUA. Ele havia participado há coisa de um ano de descoberta similar, ainda que numericamente mais modesta: a descoberta de alguns elementos ultraconservados entre homens e camundongos nas vizinhanças de um gene estranhamente apelidado de DACH (de "dachshund", a raça canina; nomes de genes, aliás, merecem coluna à parte).
"O que para mim esses estudos estão mostrando agora é que finalmente nós encontramos a base molecular dessa observação clássica", afirmou Nóbrega num e-mail. "As seqüências [de DNA] que são responsáveis pela formação dessas partes do corpo, nesse momento tão crucial do desenvolvimento embrionário, foram mantidas intactas durante centenas de milhões de anos."
Assim como o futebol, a biologia é mesmo uma caixinha de surpresas.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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