São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002

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Redemoinhos que percorrem a superfície de Marte ameaçam exploração do planeta

BRISA MARCIANA

Reuters - 10.ago.1999
Imagem da sonda Mars Global Surveyor, da Nasa, mostra tempestade de vento castigando o pólo norte marciano, levantando grandes quantidades de poeira e gelo na região; clima do planeta é instável e cheio de mudanças, apesar da ausência de chuva


Bennett Daviss
da "New Scientist"

Gigantes poderosos percorrem a superfície de Marte. Podendo chegar a dez quilômetros de altura e um de largura, eles passeiam pelo planeta, de pólo a pólo, levantando nuvens de poeira e emitindo raios em sua passagem. Eles chegam ao ponto de comandar o tempo em Marte, criando tempestades imensas que podem mergulhar o planeta na escuridão por meses a fio.
Esses monstros são redemoinhos de poeira, tubos giratórios de pó e areia cor de ferrugem que os ventos marcianos agitam até que se transformem em algo que lembra tornados gigantescos. Assim, não surpreende que os redemoinhos de pó de Marte estejam causando fortes dores de cabeça aos planejadores de missões da Nasa. Os ventos giratórios podem devastar qualquer coisa ou ser vivo que se interponha em seu caminho -por exemplo, imobilizando astronautas, bloqueando comunicações e destruindo qualquer equipamento elétrico que encontram. Se alguém deseja que humanos pisem no planeta vermelho, é bom se preparar para enfrentar os poderes assustadores dos redemoinhos.
O primeiro sinal dessas enormes nuvens carregadas de pó foi dado por fotos tiradas pelas sondas aterrissadoras Viking, nos anos 1970. Mas os redemoinhos de pó se movem tão rapidamente que o longo tempo de exposição usado pelas máquinas fotográficas das sondas resultava em imagens às quais faltavam detalhes.
Em 1999, a sonda Mars Global Surveyor, da Nasa, entrou em órbita do planeta vermelho. Suas câmeras transmitiram de volta à Terra as primeiras imagens claras desses redemoinhos e da confusão de rastros que eles deixam na poeirenta paisagem de Marte. Quando somaram essas imagens às evidências colhidas pela sonda Mars Pathfinder, que aterrissou em Marte em 1997, os cientistas não demoraram a perceber que esses monstros marcianos podem ser tudo, menos ocorrências raras. Algumas das últimas fotos tiradas pela Mars Global Surveyor mostram mais de meia dúzia de redemoinhos a poucos quilômetros um do outro. Embora possam ter aparência semelhante à dos tornados que temos aqui na Terra, os redemoinhos marcianos se formam de modo muito diferente. Os tornados da Terra se formam quando ventos fortes começam a circular no interior de tempestades maciças. Mas a atmosfera de Marte é mais ou menos cem vezes menos densa do que a da Terra e não possui os sistemas meteorológicos necessários para a formação de tornados. Não existem em Marte nuvens suficientes para bloquear o Sol. Assim, a luz forte que cai sobre a superfície pode gerar diferenças muito grandes de temperatura entre o chão e a atmosfera logo acima dela. Em um ponto perto do chão, por exemplo, a Pathfinder registrou temperatura de 16 graus centígrados, sendo que a um metro do chão a temperatura já tinha caído para 7 graus centígrados negativos. Esse tipo de variação enorme da temperatura pode esquentar a atmosfera, desencadeando fortes correntes de convecção. Toda vez que essas correntes crescem rapidamente e se chocam com pontos na paisagem, tais como colinas ou vales, a atmosfera fina começa a girar num vórtice apertado. Como a atmosfera do planeta vermelho é muito fina, depois que as correntes de convecção começam a se formar há pouco atrito entre moléculas de gás que possa desacelerar seu movimento. O vento que isso gera pode chegar a 100 km/h. E, como Marte não tem água líquida em seu solo, não há tensão superficial que mantenha juntas as partículas de pó. "O solo marciano é basicamente seco e esfarelado, como talco", diz Peter Smith, cientista planetário da Universidade do Arizona em Tucson. Mesmo um redemoinho muito pequeno pode rapidamente levantar vários quilos de solo. E, como a gravidade marciana é três vezes menor do que a da Terra, as moléculas de gás e partículas de pó que giram na atmosfera sentem uma atração gravitacional menor -ou seja, o que sobe acaba ficando no alto. Os redemoinhos de pó de Marte podem alcançar a altura do Himalaia, conter até uma tonelada de poeira e durar dias. Todo mundo concorda que os redemoinhos de Marte existem, mas ninguém sabe o que eles são capazes de fazer. É provável que qualquer coisa que se visse envolta num redemoinho desses enfrentaria problemas sérios. Mas sem entrar num deles, é difícil definir o grau de seriedade. Logo, o modo mais prático de descobrir algo é criar redemoinhos artificiais ou estudar os "primos" menores desses monstros marcianos aqui na Terra.


Os redemoinhos marcianos podem se formar muito mais facilmente do que fenômenos parecidos na Terra, graças à atmosfera rarefeita do planeta e à falta de umidade, que torna o solo 'esfarelado'


No verão passado, numa pesquisa financiada pela Nasa, Smith e seus colegas montaram pacotes móveis de instrumentos, com sensores, chips de memória e controladores de computador, os colocaram num caminhão e passaram uma semana no deserto do Arizona. A equipe procurou pontos onde houvesse campos secos e irrigados lado a lado. O solo dos campos secos seria quente e poeirento, enquanto a terra irrigada seria mais fresca -uma combinação de condições ideal para gerar redemoinhos. Quando localizavam um, dirigiam rapidamente até chegar onde imaginavam que ele atravessaria a estrada. "Aprontávamos os instrumentos em alguns segundos, antes da chegada do redemoinho", conta Smith. "Após algum tempo, ganhamos tanta prática que começamos a acertar um em cada dois." O pacote de instrumentos que eles deixavam no caminho do redemoinho era projetado para medir temperatura, umidade, pressão do ar, intensidade dos campos elétricos e magnéticos e velocidade do vento. O veículo também era equipado com um sistema de lidar, ou radar a laser. O lidar vasculha a área à sua volta com um raio laser de pulsos de luz infravermelha. Ao medir o tempo levado pelos pulsos de luz para chegar ao detector, os pesquisadores podiam criar uma imagem do redemoinho, revelando sua densidade e velocidade.

Surpresa eletrizante
A força dos campos elétricos no interior dos redemoinhos de pó da Terra deixou os cientistas espantados -um deles chegou a destruir o voltímetro. "Não imaginávamos que isso pudesse acontecer", comentou Smith, "já que o aparelho é projetado para medir relâmpagos." Mesmo redemoinhos de pó relativamente pequenos são capazes de criar campos de até dez quilovolts por hora. Não é tanto quanto as maiores tempestades de relâmpagos, que podem acumular até três megavolts por metro, mas é mais do que suficiente para provocar curtos-circuitos em equipamentos elétricos e dar um susto considerável em qualquer pessoa que possa ser atingida pela descarga.
Uma das poucas pessoas a ter qualquer idéia da sensação de ser preso no interior de um redemoinho de pó é Wesley Ward, cientista chefe do programa de astrogeologia do instituto americano Geological Survey. Em maio de 1990, como parte de um documentário feito para a televisão sobre os climas de outros planetas, ele vestiu um uniforme de astronauta e entrou dentro de um redemoinho de pó criado pelo homem.
Para criar uma miniatura de redemoinho de pó marciano, uma empresa que produz efeitos especiais mandou seus profissionais até o deserto da Califórnia, onde ergueu quatro ventiladores grandes até três metros acima de uma plataforma com um buraco em seu centro. A equipe dispôs uma dúzia de ventiladores pequenos em volta do buraco, para soprar ar para dentro de um vórtice grande. Além disso, trouxe algumas centenas de quilos de pó de argila, acrescentou alguns sacos de tijolos vermelhos esmagados (para imitar a tonalidade vermelha de Marte) e espalhou tudo isso sobre o chão da plataforma, numa camada de alguns centímetros.
Quando os cientistas ligaram os ventiladores grandes, uma coluna de ar foi sugada para cima pelo buraco na plataforma. Os ventiladores menores fizeram a coluna girar, criando um tornado vermelho de dois metros de largura e quase quatro metros de altura.
Wesley Ward aproximou-se do "tornado". Ele conta que foi uma experiência estranha. "O redemoinho se aproximou de mim. Não sabemos se a atração foi elétrica ou relacionada à pressão, mas foi estranha." A visibilidade ficou reduzida, e, de pé no centro no redemoinho, ele sentiu uma ligeira torção, "como se alguém estivesse tentando me girar como se faz com um volante, só que colocando alguns dedos sobre meus ombros".
A primeira pessoa a observar qualquer efeito elétrico foi o engenheiro de som da equipe, que captou os cliques das descargas em seus fones de ouvido. Então Ward começou a notá-lo. "Eu sentia uma ligeira carga nas pontas dos meus dedos", ele recorda. "Não quero usar um termo óbvio, dizendo que foi "chocante", mas, quando abaixei meus braços, senti um ligeiro tranco."
Como a carga de um redemoinho de pó varia segundo o tamanho dele e também, possivelmente, segundo o tipo de material que ele carrega, é provável que os redemoinhos de pó marcianos sejam altamente destrutivos, diz Bill Farrell, especialista em raios e relâmpagos planetários no Centro Goddard de Vôos Espaciais da Nasa, em Maryland. "Se você tiver muita carga numa tempestade, terá descargas como fogos-de-santelmo", uma descarga elétrica luminosa que aparece em navios ou aviões durante tempestades. "Isso pode afetar os computadores e rádios, impedindo você de se comunicar."
Qualquer coisa que eles aprenderem deve lhes ser de grande utilidade quando enviarem um pacote de sensores a Marte, provavelmente em 2009 pela Nasa, mas possivelmente em 2007, se conseguirem pegar carona numa missão da Agência Espacial Européia prevista para partir para o planeta vermelho.
O objetivo final, diz Smith, é construir um pequeno sistema de lidar que se erguesse acima da sonda aterrissadora, sobre um mastro curto. O sistema giraria lentamente, varrendo a paisagem para fornecer aviso antecipado de redemoinhos que se aproximassem. Se ele detectasse um redemoinho, o computador poderia medi-lo e informar sua velocidade e direção. Se fosse preciso, diz Smith, os astronautas poderiam proteger-se e os aterrissadores robóticos fechariam automaticamente suas portas estanques, que seriam projetadas para proteger seus equipamentos delicados.
Smith diz que é possível que os redemoinhos se revelem menos perigosos do que se pensa, mas, enquanto não se tem certeza disso, é preferível não ser atropelado por um deles. "Eu não gostaria de ser o primeiro astronauta a descer em Marte e que as pessoas me dissessem: "Achamos que redemoinhos não são um problema sério, mas não sabemos ao certo". Quando o primeiro estiver se aproximando, o experimento será você mesmo."

Tradução de Clara Allain


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