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São Paulo, quarta-feira, 17 de setembro de 2003

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ARQUEOLOGIA

Pesquisa sobre civilização do México aponta relação entre conflitos e complexidade das sociedades humanas

Hierarquia social gerou guerra, diz estudo

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

A guerra surgiu assim que as sociedades humanas se tornaram mais complexas e segmentadas, divididas em clãs. Em apoio a essa teoria, arqueólogos americanos acharam agora no México várias provas de como se desenvolveram esses conflitos antigos.
A teoria foi criada pelo antropólogo Raymond Kelly, autor de um livro sobre a origem da guerra. Estudando sociedades nativas em todo o mundo, ele notou que as que não tinham guerras eram muito pequenas para serem divididas em segmentos.
Segundo Kelly, o homicídio nessas "sociedades sem guerra" é uma ofensa apenas individual. Já a existência de clãs torna o homicídio uma ofensa ao grupo -exigindo vingança por meio da morte de um indivíduo qualquer do outro clã. A guerra na sua forma mais simples teria começado com "raids" entre grupos rivais.
O "raid" é uma incursão na qual os homens de uma tribo atacam outra, matam, queimam, saqueiam e, em seguida, voltam para casa. Há antropólogos que não classificam os "raids" como guerra, pois não haveria conquista de território, nem soldados profissionais envolvidos. Há evidências de "raids" no Egito em 10000 a.C. e no norte do Iraque em 6500 a.C, onde a densidade populacional começava a ficar elevada.

Sítios zapotecas
Kent Flannery e Joyce Marcus, do Museu de Antropologia da Universidade de Michigan em Ann Arbor (EUA), fizeram datações em vários locais da região de Oaxaca, sul do México, onde se desenvolveu a civilização zapoteca. Com isso eles puderam traçar a evolução da guerra entre os zapotecas de cerca de 1300 a.C. a 500 d.C., dos primeiros "raids" associados à vida nas primitivas aldeias até a construção de um império territorial.
As descobertas completam os estudos feitos por Charles Spencer e Elsa Redmond, do Museu Americano de História Natural de Nova York, que mostraram que o primeiro Estado zapoteca só surgiu depois que a cidade de Monte Albán conquistou a rival Tilcajete, em torno de 30 a.C.
Os achados estão descritos na última edição da revista da academia de ciências norte-americana, a "Proceedings of the National Academy of Sciences", ou "PNAS" (www.pnas.org), que também inclui um comentário escrito por Charles Spencer.

Maior complexidade
"O que eles mostram no artigo é que se pode ver como a guerra fica mais complexa à medida em que a sociedade que a pratica se torna mais complexa", diz Spencer.
Os arqueólogos fizeram testes em templos e casas queimados, além de paliçadas que cercavam posições defensivas em locais elevados. Foi datado o carvão encontrado em buracos dos postes da paliçada defensiva em San José Mogote. A paliçada foi queimada em um ataque inimigo.
Os incêndios não eram acidentais. Segundo Joyce Marcus, fogos acidentais apenas "cozinhavam" a argila que cobria as casas, e os postes de madeira eram retirados, pois podiam ser reutilizados. "Quando nós achamos os postes completamente queimados, e o fogo tão intenso que os muros de terra vitrificavam, os especialistas que nós consultamos nos disseram que o incêndio havia sido deliberado", declara Marcus.
Entre as imagens mais antigas do continente estão desenhos em baixo relevo em pedra que mostram prisioneiros mutilados e com vísceras expostas.
"É notável que o exemplo mais antigo conhecido de escrita na América Central se encontra em um monumento em San José Mogote, datado por carbono-14 entre 630 a.C. e 560 a.C., que mostra o corpo nu de um prisioneiro cujo coração foi retirado, com seu nome em hieróglifo zapoteca entre os seus pés", afirma Spencer.
Uma estrutura belicosa dos zapotecas ("yàgabetoo") era feita com caveiras dos inimigos penduradas em uma cerca. Uma delas, encontrada em La Coyotera, foi datada entre 190 a.C. e 255 d.C. "Era uma tática de terror, usada para intimidar rivais e desencorajar rebeliões", diz Marcus.
Os "raids", e depois a guerra de conquista territorial, foram elementos importantes na evolução das sociedades do antigo México. "Nós prevemos que outros locais defensivos antigos serão encontrados em outros pontos do México. Não pensamos que Oaxaca tenha sido algo fora do comum, nós achamos que ela exemplifica um processo geral", diz Marcus.
"Com a aparição de sociedades com chefes e desigualdade hereditária, os "raids" se tornaram ferramenta usada pelos chefes para derrotar seus rivais e conseguir mais recursos e população", diz.

Exército profissional
Quando Monte Albán se tornou dominante em Oaxaca, além de criado o primeiro Estado com uma burocracia para administrar o território conquistado, surgiu um exército profissional, com oficiais nobres permanentes e soldados recrutados quando preciso.
O desenvolvimento da economia, em especial o da agricultura, permitiu que uma classe de pessoas não precisasse trabalhar na lavoura e fosse sustentada por camponeses, dedicando-se unicamente ao governo ou às atividades guerreiras. "Em um certo sentido, sociedade e conflito grupal evoluíram juntos, com "feedbacks" entre os dois", afirma a arqueóloga norte-americana.
Esse Estado primitivo, assim como seus equivalentes modernos, dominava técnicas de intimidação para manter a população subjugada. Como diz Spencer, em vez de vestígios mostrando uma rica vida cerimonial, social e religiosa, o que havia em muitos povoados da região, como o de Cañada de Cuicatlán, eram restos do poder opressor do Estado zapoteca -na forma de cercas com caveiras penduradas.
"O caso de Oaxaca é especialmente importante porque é um exemplo de formação de um Estado primário, de primeira geração, na qual a organização política da sociedade evoluiu a partir de algo que não era um Estado, para algo que passou a sê-lo", diz Spencer.


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