São Paulo, domingo, 17 de setembro de 2006

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A raiz do problema
Gustavo Lourenço/Folha Imagem
Falta de biodiversidade em área selvagem pode comprometer melhoramento de variedade doméstica da mandioca (foto)


Espécies de mandioca do cerrado, com importantes recursos genéticos, correm risco de extinção

REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

Nagib Nassar costuma visitar, a cada dois anos, os mesmos trechos de cerrado onde começou seu trabalho de campo nos anos 1970. Mas, de uns tempos para cá, a experiência deixou de ser só uma lembrança agradável do começo da carreira no Brasil para se transformar na crônica de uma extinção -aliás, de várias extinções.
Até aí, nada demais para um bioma tão castigado quanto o cerrado, se não fosse pelo fato de que a guilhotina da extinção pende sobre o pescoço de 17 espécies silvestres de mandioca. Trata-se de uma péssima notícia para a segurança alimentar no Brasil, já que as formas nativas do tubérculo guardam traços que poderiam transformar a mandioca numa planta muito mais nutritiva, rústica e resistente a pragas do que é hoje.
Segundo Nassar, tudo indica que três espécies da região que estuda já tenham sumido. "A ocorrência foi ficando cada vez mais reduzida e, nos últimos anos, já não as encontrei mais", afirma o agrônomo egípcio, radicado no Brasil há três décadas e pesquisador da UnB (Universidade de Brasília). Ele estuda os três microcentros de diversidade da planta que existem no Estado de Goiás. Essas áreas, correspondentes às regiões da chapada dos Veadeiros, de Goiás Velho e de Pirenopólis-Corumbá de Goiás, contam com entre seis e oito espécies concentradas numa área com diâmetro de, no máximo, 200 km.
Nassar acaba de publicar os resultados de sua última ida a campo em artigo na revista científica "Genetic Resources and Crop Evolution". As espécies sumidas, afirma ele, podem se revelar uma perda dolorosa para os que tentam melhorar geneticamente a mandioca doméstica. Uma delas, a Manihot pilosa, seria uma das parentes mais próximas da planta; a M. oligantha é rica em proteínas, que a forma cultivada não tem; e a M. neusana é resistente a uma doença causada por bactérias. Na coleção viva que mantém na UnB, Nassar possui exemplares das três espécies e de várias outras, mas considera essencial tentar proteger o que ainda existe na natureza. O pesquisador critica também a falta de outras coleções vivas no país e o desinteresse em criar híbridos entre as formas silvestres e as domésticas, coisa que poderia ajudar a conservar, pelo menos, os genes das variedades do cerrado.
Uma coisa é certa: não vai ser brincadeira impedir a degradação do ecossistema que abriga as Manihot selvagens. A urbanização, o turismo desordenado e o avanço da fronteira agrícola para o coração do cerrado encurralou as espécies, muitas das quais árvores relativamente frondosas, ao contrário de sua parente doméstica.
"Pastos de origem estrangeira, como a braquiária, estão competindo com elas e acabam impedindo que se propaguem. Hoje só há plantas adultas -as mais jovens a braquiária tem matado", conta Rui Américo Mendes, engenheiro agrônomo da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília. "Muitas espécies vão acabar se extinguindo", reconhece Mendes, que costuma brincar dizendo que o centro da diversidade da mandioca está debaixo da sua mesa de trabalho.
Segundo Mendes, ele e seus colegas da Embrapa fizeram uma coleta recente de exemplares silvestres, na tentativa de criar uma coleção viva na instituição. Ali, hoje, há 12 espécies de mandioca, embora nem todas estejam em grande número ou em condições viáveis para reprodução.
Uma coisa é fato: o potencial genético de toda essa diversidade ainda está por ser explorado. Uma das dificuldades é que a mandioca doméstica é poliplóide (ou seja, seus genes vêm espalhados por várias cópias de cromossomos, ao invés de apenas duas, como acontece com a maioria dos organismos superiores). Isso significa que é muito comum que uma planta tenha cópias de um gene com uma característica mas outras versões desse gene que "cancelam" esse efeito em outro cromossomo, dificultando a fixação de características desejadas por meio do cruzamento.
Talvez a criação de plantas transgênicas resolvesse tal dilema, colocando diretamente o gene desejado de uma espécie em outra. "Mas não acho que isso seja uma panacéia. Por enquanto, ninguém conseguiu criar um transgênico que compensasse o esforço", afirma Mendes. Além do valor nutritivo superior ou da resistência, conta ele, as variedades menores indicam que seria possível até obter raízes que lembram mais as da batata, bem mais fáceis de colher. Isso, é claro, se a soja não tomar de vez o cerrado e engolir esse potencial.


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