|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A raiz do problema
Gustavo Lourenço/Folha Imagem
|
Falta de biodiversidade em área selvagem pode comprometer melhoramento de variedade doméstica da mandioca (foto) |
Espécies de
mandioca do
cerrado, com
importantes
recursos
genéticos,
correm risco
de extinção
REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL
Nagib Nassar costuma visitar, a cada
dois anos, os mesmos trechos de
cerrado onde começou seu trabalho de campo
nos anos 1970. Mas, de uns
tempos para cá, a experiência
deixou de ser só uma lembrança agradável do começo da carreira no Brasil para se transformar na crônica de uma extinção -aliás, de várias extinções.
Até aí, nada demais para um
bioma tão castigado quanto o
cerrado, se não fosse pelo fato
de que a guilhotina da extinção
pende sobre o pescoço de 17 espécies silvestres de mandioca.
Trata-se de uma péssima notícia para a segurança alimentar
no Brasil, já que as formas nativas do tubérculo guardam traços que poderiam transformar
a mandioca numa planta muito
mais nutritiva, rústica e resistente a pragas do que é hoje.
Segundo Nassar, tudo indica
que três espécies da região que
estuda já tenham sumido. "A
ocorrência foi ficando cada vez
mais reduzida e, nos últimos
anos, já não as encontrei mais",
afirma o agrônomo egípcio, radicado no Brasil há três décadas e pesquisador da UnB (Universidade de Brasília). Ele estuda os três microcentros de diversidade da planta que existem no Estado de Goiás. Essas
áreas, correspondentes às regiões da chapada dos Veadeiros, de Goiás Velho e de Pirenopólis-Corumbá de Goiás,
contam com entre seis e oito
espécies concentradas numa
área com diâmetro de, no máximo, 200 km.
Nassar acaba de publicar os
resultados de sua última ida a
campo em artigo na revista
científica "Genetic Resources
and Crop Evolution". As espécies sumidas, afirma ele, podem se revelar uma perda dolorosa para os que tentam melhorar geneticamente a mandioca doméstica. Uma delas, a
Manihot pilosa, seria uma das
parentes mais próximas da
planta; a M. oligantha é rica em
proteínas, que a forma cultivada não tem; e a M. neusana é resistente a uma doença causada
por bactérias. Na coleção viva
que mantém na UnB, Nassar
possui exemplares das três espécies e de várias outras, mas
considera essencial tentar proteger o que ainda existe na natureza. O pesquisador critica
também a falta de outras coleções vivas no país e o desinteresse em criar híbridos entre as
formas silvestres e as domésticas, coisa que poderia ajudar a
conservar, pelo menos, os genes das variedades do cerrado.
Uma coisa é certa: não vai ser
brincadeira impedir a degradação do ecossistema que abriga
as Manihot selvagens. A urbanização, o turismo desordenado e o avanço da fronteira agrícola para o coração do cerrado
encurralou as espécies, muitas
das quais árvores relativamente frondosas, ao contrário de
sua parente doméstica.
"Pastos de origem estrangeira, como a braquiária, estão
competindo com elas e acabam
impedindo que se propaguem.
Hoje só há plantas adultas -as
mais jovens a braquiária tem
matado", conta Rui Américo
Mendes, engenheiro agrônomo
da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília. "Muitas espécies vão acabar
se extinguindo", reconhece
Mendes, que costuma brincar
dizendo que o centro da diversidade da mandioca está debaixo da sua mesa de trabalho.
Segundo Mendes, ele e seus
colegas da Embrapa fizeram
uma coleta recente de exemplares silvestres, na tentativa
de criar uma coleção viva na
instituição. Ali, hoje, há 12 espécies de mandioca, embora
nem todas estejam em grande
número ou em condições viáveis para reprodução.
Uma coisa é fato: o potencial
genético de toda essa diversidade ainda está por ser explorado. Uma das dificuldades é
que a mandioca doméstica é
poliplóide (ou seja, seus genes
vêm espalhados por várias cópias de cromossomos, ao invés
de apenas duas, como acontece
com a maioria dos organismos
superiores). Isso significa que é
muito comum que uma planta
tenha cópias de um gene com
uma característica mas outras
versões desse gene que "cancelam" esse efeito em outro cromossomo, dificultando a fixação de características desejadas por meio do cruzamento.
Talvez a criação de plantas
transgênicas resolvesse tal dilema, colocando diretamente o
gene desejado de uma espécie
em outra. "Mas não acho que
isso seja uma panacéia. Por enquanto, ninguém conseguiu
criar um transgênico que compensasse o esforço", afirma
Mendes. Além do valor nutritivo superior ou da resistência,
conta ele, as variedades menores indicam que seria possível
até obter raízes que lembram
mais as da batata, bem mais fáceis de colher. Isso, é claro, se a
soja não tomar de vez o cerrado
e engolir esse potencial.
Texto Anterior: + Marcelo Gleiser: O Sol virtual Próximo Texto: + Marcelo Leite: Voto nulo e antiinflamatório Índice
|