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MEDICINA
Vírus que levava DNA contra mal de "meninos da bolha" desregulou outro gene e causou leucemia, diz grupo francês
Estudo desvenda falha em terapia gênica
REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Os responsáveis pelo que parecia ser o único sucesso incontestável de terapia gênica acabam de
desvendar por que o tratamento
acabou causando leucemia em 2
de 10 portadores de uma rara
doença imune. Segundo eles, o vírus que carregava o material genético "corretivo" ativou um gene
que desencadeou a doença.
Os dois meninos de três anos de
idade que acabaram adquirindo
leucemia conseguiram se curar,
mas o trabalho mostra que ainda
há um caminho longo e imprevisível à frente antes que a manipulação de genes no organismo humano se torne algo seguro.
Foi a própria equipe responsável pelo aparente sucesso do tratamento, num experimento de
2000, que se pôs a vasculhar as razões do aparecimento da doença.
O grupo, liderado pelo médico
francês Alain Fischer, 54, da Universidade Paris-5, publica os resultados desse inquérito na edição de hoje da revista "Science"
(www.sciencemag.org).
A doença combatida pelos experimentos de Fischer e seus colegas tem um nome tão indigesto
quanto seus sintomas: imunodeficiência severa combinada ligada
ao (cromossomo) X. Seus pacientes costumam ser apelidados de
"meninos da bolha", porque o sistema de defesa de seus organismos é tão débil que eles precisam
ser mantidos em isolamento
completo do mundo exterior.
"Eles têm uma deficiência imune muito profunda e são incapazes de produzir linfócitos T [células cruciais do sistema de defesa
do organismo]. A expectativa de
vida não passa de meses", explica
Fischer. A doença afeta o DNA do
cromossomo X e por isso só acomete meninos -pessoas do sexo
feminino (XX) conseguem compensar o problema com sua segunda cópia desse cromossomo,
que os homens (XY) não têm.
Cavalo-de-tróia
Para corrigir o problema, Fischer e seus colegas inseriram num
vírus a sequência de "letras" químicas de DNA que especifica a
proteína cuja falta impedia a sobrevivência dos linfócitos T nos
garotos doentes, então com alguns meses de vida. "O retrovírus
[tipo de vírus usado no experimento] é modificado de forma
que só restam as extremidades de
seu material genético, que lhe permitem se inserir no cromossomo", diz o pesquisador francês.
A transferência do gene foi feita
infectando com o retrovírus células precursoras hematopoiéticas
(as células da medula óssea que
dão origem a glóbulos vermelhos,
linfócitos e todos os outros componentes do sangue) e recolocando-as nos dez garotos. Cada um
recebeu cerca de 25 milhões delas
por quilo de peso corporal.
Por mais de dois anos, parecia
que os meninos haviam ganhado
definitivamente uma vida normal. Há um ano, a equipe detectou em dois deles a proliferação
de linfócitos T, sobrepujando todos os outros tipos de célula no
sangue. Eles tinham desenvolvido
uma forma de leucemia.
Diante disso, Fischer e seus colegas examinaram o genoma dos
linfócitos T e descobriram que,
nos dois garotos doentes, o retrovírus havia se inserido no mesmo
lugar: a área que regula o funcionamento do gene LMO2. É uma
região do DNA essencial para a
produção de células do sangue.
"Em certo sentido não foi uma
surpresa, porque outros casos de
leucemia já tinham sido ligados a
alterações nesse gene", conta o
médico americano David Williams, 49, do Centro Médico do
Hospital Infantil de Cincinnati
(EUA). Williams, que é um dos
pioneiros da técnica, comentou o
estudo de Fischer na "Science".
Embora pareça muita coincidência que dois dos pacientes tivessem a inserção no mesmo gene
-quase como se o LMO2 estivesse "atraindo" o retrovírus-, Williams afirma que, por enquanto,
não há como saber por que isso
aconteceu logo ali. "Se você fizer
as contas, verá que a probabilidade de isso acontecer aleatoriamente não é tão pequena assim."
Outro problema, aponta o médico: o gene inserido é um fator
que impede a morte celular programada (apoptose). "Em condições normais, ele simplesmente
manteria as células T vivas pelo
tempo necessário, mas, com a
desregulação do LMO2, elas passaram a viver ainda mais", afirma.
Para Fischer, o revés não atinge
todas as formas de geneterapia,
mas apenas as que exigem a inserção de DNA nos cromossomos. O
risco de alterações poderia diminuir se poucas células modificadas fossem inseridas, pondera ele.
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