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GENÉTICA
Traços físicos que definem "cor" não indicam com segurança se genes de importância médica têm origem africana
Raça é só conceito social, diz DNA brasileiro
MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA
Nem todo negro no Brasil é geneticamente um afrodescendente, e nem todo afro-brasileiro é
necessariamente um negro. Assim se pode resumir a pesquisa do
grupo de Flavia Parra e Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), divulgada hoje na internet pela revista da Academia de Ciências
-a dos EUA, onde o estudo dos
pesquisadores brasileiros poderá
ter grande impacto.
De quebra, o trabalho deita por
terra a possibilidade de encontrar
um "critério científico" de grupos
raciais, como defendeu o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da
Silva, em debate na TV. Pena, 55,
um especialista na origem genética da população brasileira, diz
que a complexidade envolvida é
"brutal" e que não existe base objetiva para a introdução de cotas
raciais nas universidades públicas, por exemplo.
"A única coisa que se pode usar,
sujeita a muitos abusos, é a autoclassificação" (ou seja, o próprio
interessado declarar se é negro),
diz o geneticista, que já havia estudado as linhagens genéticas da
população brasileira com base
nos cromossomos Y (herdados
apenas do pai) e no DNA das organelas celulares chamadas mitocôndrias (herdadas somente da
mãe). "Não temos nenhuma intenção de que esse índice seja usado para avaliação individual. Seria um novo racismo."
Se a expectativa de direito a uma
compensação pelas injustiças sofridas por negros no Brasil tiver
por fundamento a ancestralidade,
porém, a pesquisa da UFMG
-que teve a colaboração de cientistas da Universidade do Porto,
em Portugal- embaralha tudo.
Isso porque ela demonstra que ter
a pele escura não indica com segurança que a pessoa teve a maioria de seus genes herdada de ascendentes africanos.
"Nossos dados sugerem que no
Brasil, no plano individual, a cor
determinada por avaliação física é
um fraco fator de predição de ancestralidade genômica africana
estimada por marcadores moleculares", dizem os autores no artigo, em linguagem cautelosa.
Os marcadores genéticos usados no estudo foram propostos
por Esteban Parra na revista especializada "American Journal of
Human Genetics" em 1998. Eles
foram escolhidos porque têm alta
correlação com a origem africana
ou européia da população (pelo
menos 48% mais comuns numa
das populações) e reunidos estatisticamente num "Índice de Ancestralidade Africana" (AAI).
Seleção natural
Supõe-se que essas sequências
de DNA tenham sido selecionadas ao longo da evolução de populações para aumentar as chances de sobrevivência num determinado ambiente. Faz mais sentido, por exemplo, um africano ter
genes associados com alguma resistência a malária, porque é em
seu continente que a doença se
mostra devastadora. O mesmo
valeria para características físicas
mais relacionadas com noções sociais de raça, como a pele negra.
Ocorre que essas dez sequências
de DNA não são necessariamente
herdadas em bloco, pois estão espalhadas pelo genoma (todo o
DNA contido nos 46 cromossomos da espécie humana). Se uma
mulher branca tem um filho com
um homem negro, por exemplo, a
criança pode herdar do pai os genes associados com resistência a
malária e da mãe os genes que
contribuem para a conformação
do nariz. Seria "africano" do ponto de vista da doença e "europeu"
do ponto de vista nasal.
De certo modo, foi o que se encontrou numa amostra da população rural de Minas Gerais que
participa de um estudo de saúde
da UFMG, o Projeto Queixadinha. Tanto os 30 indivíduos classificados fisicamente como "negros" quanto os 114 "intermediários" receberam escores genéticos
de "africanidade" distribuídos
numa faixa de AAI entre -10 (menos "africanos") e +10.
Além disso, os de aparência física categorizada como "branca"
também apresentaram valores intermediários entre -10 e +5. Algo
muito diferente da amostra de 20
portugueses empregada para validar os marcadores genéticos, com
valores negativos consistentes, na
faixa de -15 a -5.
Uma verificação adicional foi
feita com homens autoclassificados como "brancos", pois o grupo
da UFMG temia que a mistura genética verificada em Queixadinha
fosse uma peculiaridade da população local. De novo, o que se encontrou foram valores bem menos "europeus" do que os observados em portugueses.
"O que nosso estudo mostra é
que o branco de Queixadinha é
muito parecido com o do Sudeste.
Nem o branco do Sul bate com os
portugueses", afirma Pena. "E
olhe que na [distribuição genética
da] Europa os portugueses já
mostram certa mistura."
Apesar de toda a miscigenação
no Brasil, Pena diz que certos blocos de características físicas ainda
tendem a se manter associados na
população, como a tríade pele negra/cabelo encarapinhado/nariz
chato. A razão, contudo, não é genômica (proximidade no cromossomo ou regulação compartilhada), e sim social: as pessoas
tendem a escolher parceiros sexuais segundo parâmetros raciais,
perpetuando a correlação de traços que, de outro modo, tenderiam a dissociar-se.
Epidemiologia e genética
O problema é que nesse pacote
herdado em bloco não se encontram necessariamente aqueles genes associados com características metabólicas importantes para
a saúde e para a doença. Uma pessoa pode ser classificada socialmente como negra e não ser geneticamente "africana", do ponto de
vista desta ou daquela especialidade médica.
Nos EUA, a pátria do politicamente correto e da ação afirmativa, "negro" é sinônimo de "afro-americano", e não se discute. Milhões de dólares são despendidos
com pesquisas sobre doenças
mais comuns em afro-americanos, mas uma parcela que seja da
miscigenação ocorrida no Brasil
já serviria para invalidar muitas
conclusões, pois uma das variáveis empregadas -se a pessoa é
negra ou "caucasiana"- pode estar mal definida. "Estou ansioso
para ver a reação da imprensa
americana", diz Pena.
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