São Paulo, terça-feira, 17 de dezembro de 2002

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GENÉTICA

Traços físicos que definem "cor" não indicam com segurança se genes de importância médica têm origem africana

Raça é só conceito social, diz DNA brasileiro

MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA

Nem todo negro no Brasil é geneticamente um afrodescendente, e nem todo afro-brasileiro é necessariamente um negro. Assim se pode resumir a pesquisa do grupo de Flavia Parra e Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), divulgada hoje na internet pela revista da Academia de Ciências -a dos EUA, onde o estudo dos pesquisadores brasileiros poderá ter grande impacto.
De quebra, o trabalho deita por terra a possibilidade de encontrar um "critério científico" de grupos raciais, como defendeu o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, em debate na TV. Pena, 55, um especialista na origem genética da população brasileira, diz que a complexidade envolvida é "brutal" e que não existe base objetiva para a introdução de cotas raciais nas universidades públicas, por exemplo.
"A única coisa que se pode usar, sujeita a muitos abusos, é a autoclassificação" (ou seja, o próprio interessado declarar se é negro), diz o geneticista, que já havia estudado as linhagens genéticas da população brasileira com base nos cromossomos Y (herdados apenas do pai) e no DNA das organelas celulares chamadas mitocôndrias (herdadas somente da mãe). "Não temos nenhuma intenção de que esse índice seja usado para avaliação individual. Seria um novo racismo."
Se a expectativa de direito a uma compensação pelas injustiças sofridas por negros no Brasil tiver por fundamento a ancestralidade, porém, a pesquisa da UFMG -que teve a colaboração de cientistas da Universidade do Porto, em Portugal- embaralha tudo. Isso porque ela demonstra que ter a pele escura não indica com segurança que a pessoa teve a maioria de seus genes herdada de ascendentes africanos.
"Nossos dados sugerem que no Brasil, no plano individual, a cor determinada por avaliação física é um fraco fator de predição de ancestralidade genômica africana estimada por marcadores moleculares", dizem os autores no artigo, em linguagem cautelosa.
Os marcadores genéticos usados no estudo foram propostos por Esteban Parra na revista especializada "American Journal of Human Genetics" em 1998. Eles foram escolhidos porque têm alta correlação com a origem africana ou européia da população (pelo menos 48% mais comuns numa das populações) e reunidos estatisticamente num "Índice de Ancestralidade Africana" (AAI).

Seleção natural
Supõe-se que essas sequências de DNA tenham sido selecionadas ao longo da evolução de populações para aumentar as chances de sobrevivência num determinado ambiente. Faz mais sentido, por exemplo, um africano ter genes associados com alguma resistência a malária, porque é em seu continente que a doença se mostra devastadora. O mesmo valeria para características físicas mais relacionadas com noções sociais de raça, como a pele negra.
Ocorre que essas dez sequências de DNA não são necessariamente herdadas em bloco, pois estão espalhadas pelo genoma (todo o DNA contido nos 46 cromossomos da espécie humana). Se uma mulher branca tem um filho com um homem negro, por exemplo, a criança pode herdar do pai os genes associados com resistência a malária e da mãe os genes que contribuem para a conformação do nariz. Seria "africano" do ponto de vista da doença e "europeu" do ponto de vista nasal.
De certo modo, foi o que se encontrou numa amostra da população rural de Minas Gerais que participa de um estudo de saúde da UFMG, o Projeto Queixadinha. Tanto os 30 indivíduos classificados fisicamente como "negros" quanto os 114 "intermediários" receberam escores genéticos de "africanidade" distribuídos numa faixa de AAI entre -10 (menos "africanos") e +10.
Além disso, os de aparência física categorizada como "branca" também apresentaram valores intermediários entre -10 e +5. Algo muito diferente da amostra de 20 portugueses empregada para validar os marcadores genéticos, com valores negativos consistentes, na faixa de -15 a -5.
Uma verificação adicional foi feita com homens autoclassificados como "brancos", pois o grupo da UFMG temia que a mistura genética verificada em Queixadinha fosse uma peculiaridade da população local. De novo, o que se encontrou foram valores bem menos "europeus" do que os observados em portugueses.
"O que nosso estudo mostra é que o branco de Queixadinha é muito parecido com o do Sudeste. Nem o branco do Sul bate com os portugueses", afirma Pena. "E olhe que na [distribuição genética da] Europa os portugueses já mostram certa mistura."
Apesar de toda a miscigenação no Brasil, Pena diz que certos blocos de características físicas ainda tendem a se manter associados na população, como a tríade pele negra/cabelo encarapinhado/nariz chato. A razão, contudo, não é genômica (proximidade no cromossomo ou regulação compartilhada), e sim social: as pessoas tendem a escolher parceiros sexuais segundo parâmetros raciais, perpetuando a correlação de traços que, de outro modo, tenderiam a dissociar-se.

Epidemiologia e genética
O problema é que nesse pacote herdado em bloco não se encontram necessariamente aqueles genes associados com características metabólicas importantes para a saúde e para a doença. Uma pessoa pode ser classificada socialmente como negra e não ser geneticamente "africana", do ponto de vista desta ou daquela especialidade médica.
Nos EUA, a pátria do politicamente correto e da ação afirmativa, "negro" é sinônimo de "afro-americano", e não se discute. Milhões de dólares são despendidos com pesquisas sobre doenças mais comuns em afro-americanos, mas uma parcela que seja da miscigenação ocorrida no Brasil já serviria para invalidar muitas conclusões, pois uma das variáveis empregadas -se a pessoa é negra ou "caucasiana"- pode estar mal definida. "Estou ansioso para ver a reação da imprensa americana", diz Pena.


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