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Marcelo Gleiser
O "por quê?" e o "como?"
Nem sempre a ciência pode ou mesmo
tenta ou deve explicar
o porquê das coisas
Uma das percepções mais comuns da ciência é que ela tem
o dever de explicar o porquê de
tudo. Por exemplo, por que o céu diurno é azul e não amarelo ou laranja?
Por que a Terra gira em torno do Sol e
não o contrário, como se pensava até
400 anos atrás? Por que existe vida na
Terra e não em Vênus? Por que algumas pessoas têm olhos azuis e outras,
castanhos?
Na prática, no entanto, a situação é
mais complicada: existem dois tipos
de pergunta, o "por quê?" e o "como?".
Nem sempre a ciência pode ou mesmo
tenta ou deve explicar o porquê das
coisas. Perguntas do tipo "como" são,
em geral, muito mais apropriadas à
missão da ciência de descrever a realidade em que vivemos.
Eis um exemplo extremo. Por que o
Universo surgiu? Não há como responder a essa questão cientificamente. E por que não? Porque a pergunta
não é científica. Ela implica numa suposta intenção, uma teleologia que
simplesmente não pertence ao discurso científico. Porém, a pergunta "como surgiu o Universo?" é bem mais
apropriada, embora altamente complexa. Mesmo que não tenhamos uma
resposta, não é absurdo achar que ela
exista e que um dia seja encontrada.
Outro exemplo, mais concreto: no
século 17, o inglês Isaac Newton desenvolveu uma teoria da gravidade baseada no seguinte fato: todos os objetos materiais no Universo, como você,
os planetas e as estrelas, exercem uma
atração sobre todos os outros objetos
-atração esta proporcional à magnitude de suas massas e inversamente
proporcional ao quadrado da distância que existe entre eles.
Portanto, corpo A com massa MA e
corpo B com massa MB exercem atração mútua com uma força proporcional a MAxMB, o produto das duas massas. Imagino que alguns leitores se
surpreendam com isso e se perguntem: isso significa que estrelas distantes estão me atraindo e eu a elas? Sim.
E por que não voamos na direção delas? Porque felizmente a força cai com
o quadrado da distância. Para nós, seres terrestres, a atração da Terra domina de longe todas as outras.
A teoria de Newton é extremamente bem-sucedida, explicando uma série de observações e fenômenos que
presenciamos no nosso dia-a-dia. Por
exemplo, ela demonstra que a trajetória de uma bala de canhão ou de uma
pedra atirada para frente é parabólica
e que as órbitas dos planetas em torno
do Sol são elipses. Com isso, é possível
calcular com altíssima precisão os
movimentos terrestres e celestes que
dependem da força da gravidade.
Mesmo assim, essa é uma teoria do
"como" e não do "por quê".
Uma das críticas que se fez ainda no
tempo de Newton é que essa atração à
distância entre o Sol e os planetas, ou
entre uma pedra e a Terra, é muito
misteriosa. Quando perguntaram a
ele por que massas se atraem, respondeu que preferia não inventar hipóteses sobre o assunto: uma teoria científica pode se contentar em descrever
com alta precisão como os planetas
seguem suas órbitas celestes ou qual a
trajetória de um foguete sem ter que
explicar por que massas se atraem.
Isso pode frustrar aqueles que precisam de uma explicação completa e
absoluta de tudo, mas não frustra os
cientistas. Essa diferença de opinião
vem de uma expectativa distorcida do
que seja a ciência. Muitos acham que,
como a ciência explica racionalmente
tantas coisas que antes eram "explicadas" pela religião, deveria mesmo explicar tudo, como o faz a religião.
No entanto, a proposta da ciência é
bem mais humilde: basta explicar "como". O que fazemos é desvendar as regras que regem a realidade, não explicar por que elas existem.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim
da Terra e do Céu"
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