São Paulo, domingo, 18 de junho de 2006

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Marcelo Leite

O paradoxo da fluoxetina

Tratamento da depressão pode estar na raiz da queda de mortes

O medicamento antidepressivo mais prescrito e vendido do mundo é a fluoxetina, mais conhecida pela marca registrada com que chegou ao mercado em 1988: Prozac. Foi uma das grandes histórias de sucesso da indústria farmacêutica e virou emblema do poder da bioquímica sobre o espírito, em detrimento das arrastadas e palavrosas psicoterapias. Isso até o ano de 2004.
Em outubro daquele ano, a toda-poderosa FDA, agência de alimentos e fármacos dos Estados Unidos, lançou um aviso de saúde pública que abriu uma cunha no prestígio do remédio e de seus similares (ele faz parte de uma classe que se tornou conhecida como os ISRSs, inibidores seletivos de recaptação de serotonina, um importante neurotransmissor).
Único tipo de droga aprovado para tratar depressão em crianças, ele dobrava o risco de pensamentos e ações suicidas entre elas, de 2% para 4%. O aviso da FDA se baseava na análise combinada de 24 estudos clínicos, que somavam o acompanhamento de mais de 4.400 pacientes.
Em junho de 2005, um novo aviso da agência norte-americana anunciava que uma revisão similar, com centenas de estudos e milhares de pacientes, havia sido iniciada. A meta agora é avaliar o risco de que os ISRSs também facilitem processos suicidas em adultos. A análise ainda não foi concluída, mas sua simples realização contribuiu para arrefecer um pouco mais do entusiasmo desmesurado com a turma da fluoxetina.
Surge agora uma boa nova para o remédio, que só perdeu o título de mais popular para o Viagra (sildenafil). Um estudo estatístico publicado no periódico especializado de acesso aberto "PLoS Medicine" (www.plosmedicine.org) traz a conclusão paradoxal: desde que o Prozac começou a ser vendido, diminuiu relativamente a quantidade de suicídios nos EUA.
As taxas anuais de suicídio analisadas vão de 1960 a 2002. Até 1988, ela flutuou entre 12,2 e 13,7 por 100 mil habitantes. A partir daí -ou seja, do ano em que a fluoxetina chegou ao mercado como Prozac- começou a cair paulatinamente. A menor marca foi a de 2000: 10,4 por 100 mil.
Em paralelo, o número de prescrições de fluoxetina nos EUA subiu de 2,5 milhões em 1988 para 33 milhões em 2002. Os testes estatísticos confirmam o que qualquer um pode ver: há uma correlação muito forte entre as duas curvas. A análise também indica que 33,6 mil mortes por suicídio podem ter sido evitadas nos últimos 18 anos, com o Prozac.
Correlação não é causa, alertam os próprios autores do artigo, Michael S. Milane, Marc A. Suchard, Ma-Li Wong e Julio Licinio, todos da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Os números, sozinhos, não comprovam que a fluoxetina diminuiu a taxa de suicídios (outros fatores podem estar envolvidos nisso). Mas sugerem que o tratamento eficaz e disseminado da depressão, em escala populacional, parece estar na raiz dessa tendência de queda.
Isso tampouco exclui que, em alguns indivíduos, os ISRSs possam favorecer o surgimento de pensamentos e ações suicidas. Um paradoxo, mas só em aparência.
Antes que alguém conclua que o estudo foi encomendando: seu financiamento saiu exclusivamente dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (um órgão de governo) e da Fundação Dana. Nenhum centavo da indústria farmacêutica.
A "PLoS Medicine" é a mesma revista que em abril publicou um dossiê devastador contra o marketing dessa mesma indústria "fabricadora de doenças". Agora, com o novo estudo, prova pelo exemplo que críticas e controle público não precisam degenerar em demonização da Big Pharma.


Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor dos livros paradidáticos"Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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