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Marcelo Leite
O paradoxo da fluoxetina
Tratamento da depressão pode estar na raiz da queda
de mortes
O
medicamento antidepressivo
mais prescrito e vendido do
mundo é a fluoxetina, mais conhecida pela marca registrada com
que chegou ao mercado em 1988: Prozac. Foi uma das grandes histórias de
sucesso da indústria farmacêutica e
virou emblema do poder da bioquímica sobre o espírito, em detrimento das
arrastadas e palavrosas psicoterapias.
Isso até o ano de 2004.
Em outubro daquele ano, a toda-poderosa FDA, agência de alimentos e
fármacos dos Estados Unidos, lançou
um aviso de saúde pública que abriu
uma cunha no prestígio do remédio e
de seus similares (ele faz parte de uma
classe que se tornou conhecida como
os ISRSs, inibidores seletivos de recaptação de serotonina, um importante neurotransmissor).
Único tipo de droga aprovado para
tratar depressão em crianças, ele dobrava o risco de pensamentos e ações
suicidas entre elas, de 2% para 4%. O
aviso da FDA se baseava na análise
combinada de 24 estudos clínicos, que
somavam o acompanhamento de
mais de 4.400 pacientes.
Em junho de 2005, um novo aviso
da agência norte-americana anunciava que uma revisão similar, com centenas de estudos e milhares de pacientes, havia sido iniciada. A meta agora é
avaliar o risco de que os ISRSs também facilitem processos suicidas em
adultos. A análise ainda não foi concluída, mas sua simples realização
contribuiu para arrefecer um pouco
mais do entusiasmo desmesurado
com a turma da fluoxetina.
Surge agora uma boa nova para o remédio, que só perdeu o título de mais
popular para o Viagra (sildenafil). Um
estudo estatístico publicado no periódico especializado de acesso aberto
"PLoS Medicine" (www.plosmedicine.org) traz a conclusão paradoxal:
desde que o Prozac começou a ser
vendido, diminuiu relativamente a
quantidade de suicídios nos EUA.
As taxas anuais de suicídio analisadas vão de 1960 a 2002. Até 1988, ela
flutuou entre 12,2 e 13,7 por 100 mil
habitantes. A partir daí -ou seja, do
ano em que a fluoxetina chegou ao
mercado como Prozac- começou a
cair paulatinamente. A menor marca
foi a de 2000: 10,4 por 100 mil.
Em paralelo, o número de prescrições de fluoxetina nos EUA subiu de
2,5 milhões em 1988 para 33 milhões
em 2002. Os testes estatísticos confirmam o que qualquer um pode ver: há
uma correlação muito forte entre as
duas curvas. A análise também indica
que 33,6 mil mortes por suicídio podem ter sido evitadas nos últimos 18
anos, com o Prozac.
Correlação não é causa, alertam os
próprios autores do artigo, Michael S.
Milane, Marc A. Suchard, Ma-Li
Wong e Julio Licinio, todos da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Os números, sozinhos, não comprovam que a fluoxetina diminuiu a
taxa de suicídios (outros fatores podem estar envolvidos nisso). Mas sugerem que o tratamento eficaz e disseminado da depressão, em escala populacional, parece estar na raiz dessa
tendência de queda.
Isso tampouco exclui que, em alguns indivíduos, os ISRSs possam favorecer o surgimento de pensamentos
e ações suicidas. Um paradoxo, mas só
em aparência.
Antes que alguém conclua que o estudo foi encomendando: seu financiamento saiu exclusivamente dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA
(um órgão de governo) e da Fundação
Dana. Nenhum centavo da indústria
farmacêutica.
A "PLoS Medicine" é a mesma revista que em abril publicou um dossiê
devastador contra o marketing dessa
mesma indústria "fabricadora de
doenças". Agora, com o novo estudo,
prova pelo exemplo que críticas e controle público não precisam degenerar
em demonização da Big Pharma.
Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp,
autor dos livros paradidáticos"Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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