São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

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Ciência em dia

O conto das células de cordão

Marcelo Leite
editor de Ciência

O público nem tem noção, mas um debate importante para sua saúde está acontecendo no Brasil -ou melhor, deveria acontecer, pois pouca gente participa dele. Refiro-me à questão das células de cordão umbilical, em torno das quais floresce um negócio aparentemente rentável.
Nada contra alguém ganhar dinheiro, claro, desde que a atividade não implique engodo. Os bancos privados de células de cordão em funcionamento, que oferecem serviços diretamente aos consumidores, são fiscalizados por entidades como Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e CFM (Conselho Federal de Medicina), e se presume que bem fiscalizados.
Fique o leitor avisado, porém, de que as aplicações terapêuticas disponíveis são poucas, e as doenças a que se aplicam, raras. Quem se dispuser a pagar os mais de R$ 3.000 cobrados de cara por esse tipo de serviço -fora anuidades de R$ 300 a R$ 600 para manter o material congelado- precisa saber disso (quem ligar para um dos bancos notará que o conto narrado tem muito mais finais felizes).
O sangue do cordão é coletado logo após o nascimento, para obtenção de células-tronco, material do qual se pode obter, em princípio, qualquer tipo de célula. Caso uma futura doença possa ser curada ou tratada com reposição, o paciente poderia sacar dessa poupança celular paga por seus pais (e fazer um transplante dito autólogo). É mais promessa do que realidade, mas, vá lá, compra quem quer.
Mais promissora parece a perspectiva de um banco público de células de cordão, com potencial para beneficiar qualquer um que venha a precisar desse tipo de terapia, e não só o proprietário das células entesouradas num banco privado. Calcula-se que 12 mil cordões seriam estatisticamente suficientes para garantir compatibilidade com qualquer brasileiro, caso necessite de um transplante (heterólogo, nesse caso).
Há 2.500 novos pacientes necessitados de transplante a cada ano no Brasil, em geral de leucemia. Hoje são atendidos por transplantes de medula óssea, que também têm células-tronco, mas a busca por doador muitas vezes é infrutífera e pode se estender ao exterior (e custar US$ 40 mil). O SUS paga 50 pesquisas por ano. Há previsão de chegar a 200, mas a verba disponível não deve passar muito de US$ 8 milhões.
Os defensores de um banco público único de células de cordão dizem que ele custaria aproximadamente isso, US$ 10 milhões, mas para beneficiar cerca de 1.500 pessoas por ano. É certo que o volume colhido do cordão é pequeno e limita o tratamento hoje a pacientes com até 60 kg, uma desvantagem em relação ao transplante tradicional de medula óssea. Por outro lado, as células de cordão, mais "imaturas", têm potencial menor para causar rejeição em quem as recebe.
Carlos Alberto Moreira Filho, superintendente do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein de São Paulo, diz que a instituição se dispõe a custear os US$ 10 milhões para criar um banco público. Só falta normatizar aspectos operacionais, o que teria de ser feito pelo Ministério da Saúde -o qual, segundo Moreira Filho, tem se mostrado receptivo.
Em se tratando do Brasil, porém, parece mais provável que continuem a proliferar os bancos privados. Não basta a boa vontade dos técnicos do ministério -que anda infestado por vampiros.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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