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MICRO/MACRO
Ciência e espiritualidade
MARCELO GLEISER
especial para a Folha
Nestes tempos "pré-milenares", em que tudo se transforma
tão rapidamente, o apetite das
pessoas por verdades e certezas
mais permanentes vem atingindo níveis jamais vistos ou mesmo previstos. O acesso fácil aos
computadores e às telecomunicações criou uma aldeia global,
onde a troca de informação entre diferentes culturas e pessoas
do mundo é mais fácil e barata
do que em qualquer outro período da história humana.
Esse excesso de informação,
ao mesmo tempo inspirador e
aterrorizador, causa muita confusão e estresse na cabeça das
pessoas.
A tecnologia é muitas vezes
percebida como uma espécie de
monstro, capaz de curas milagrosas e de viagens interplanetárias, mas também de produzir
armas que poderiam aniquilar a
vida na Terra.
Inevitavelmente, surgem teorias de conspirações clandestinas e o governo (em muitos casos, merecidamente!) perde a
sua credibilidade, enquanto
uma intolerância generalizada
ameaça polarizar ainda mais a
sociedade. O resultado é uma
sensação de pânico e abandono
avidamente explorada por oportunistas que se apresentam como a única alternativa em um
"mundo louco".
Com isso, observamos a proliferação de seitas da "Nova Era",
de várias superstições (gnomos,
anjos, fadas e outras criaturas
fantásticas) e de pregadores da
"verdade". Observamos também o crescimento do desprezo
pela ciência e pelo que ela tem a
dizer sobre o mundo.
A ciência é considerada a antítese da espiritualidade, uma atividade fria e manipuladora, dedicada a tirar Deus das pessoas.
Ou as pessoas de Deus.
Acredito que essa concepção
completamente errônea do que
é a ciência e de como ela funciona seja a responsável por sua impopularidade, descontados os
fãs, claro. Parte da culpa pertence, sem dúvida, à comunidade
científica; historicamente, poucos cientistas dedicaram parte
de seu tempo à divulgação, ao
público, de suas idéias e descobertas. Essa situação está gradualmente se transformando,
mas muito ainda precisa ser feito, especialmente nos meios de
comunicação de maior penetração, como a televisão ou o cinema. O que ainda vemos, na
maior parte desses veículos, depende do sensacionalismo barato e de distorções da imagem do
cientista ou de seu trabalho.
Como, então, podemos reconciliar a ciência com o grande público, fazendo com que sua divulgação não traga, necessariamente, sua distorção? Vários livros de divulgação científica tiveram sucesso por revelar uma
conexão entre ciência e espiritualidade, como "O Tao da Física", de Fritjof Capra. A julgar
por esses livros, a resposta deve
revolver em torno de uma reconciliação entre ciência e espiritualidade. Infelizmente, não
creio que o caminho usado por
esses autores revele a espiritualidade da ciência de forma correta; não creio que a ciência esteja
simplesmente redescobrindo
"verdades" descobertas através
da meditação ou de uma conexão mística com o mundo, como
nas religiões orientais.
A espiritualidade da ciência
não é encontrada através de
comparações entre suas descobertas e as práticas e ensinamentos de diversas religiões. Ela é encontrada na paixão com que os
cientistas devotam toda uma vida na tentativa de desvendar os
mistérios do mundo à sua volta.
Ela é encontrada no próprio ato
criativo, aquele momento de autotranscendência que desafia
qualquer explicação racional.
Ela é encontrada em sua humanidade e na poesia que revela.
Enquanto a ciência tenta entender o "como", deixando de
lado o "porquê", a religião aceita
o "porquê" baseada na fé, pouco
se preocupando com o "como".
Certas questões são exclusivas
da ciência, enquanto outras pertencem somente à religião.
O fundamental é saber discernir os limites de ambas, suas diferentes missões e o simples fato
de elas serem necessárias para a
nossa existência.
Marcelo Gleiser é físico teórico do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Retalhos Cósmicos".
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