|
Próximo Texto | Índice
BIOLOGIA MOLECULAR
Cientistas de 25 grupos se unem para descobrir como miscigenação afeta reação a remédios no país
Rede traça retrato farmacológico do Brasil
REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Cientistas em 25 grupos de pesquisa, do Rio Grande do Sul ao
Pará, estão unindo forças para entender como o DNA dos brasileiros influencia a resposta aos medicamentos. Espera-se que os dados permitam chegar o mais perto possível de uma forma personalizada de medicina. A meta é
selecionar a dose e o tipo do remédio com base na química do organismo do doente.
"Numa população tão miscigenada quanto a nossa, extrapolar
dados de populações etnicamente
mais definidas é perigoso", afirma
o médico Guilherme Suarez-Kurtz, da Coordenação de Pesquisa do Inca (Instituto Nacional
de Câncer), no Rio de Janeiro. O
pesquisador coordena a rede de
farmacogenômica (como é denominado o estudo da interação entre o genoma e os medicamentos), que atua em conjunto desde
a metade do ano passado.
O conceito principal que sustenta os estudos farmacogenômicos é o de que a imensa maioria
das dosagens de medicamentos
são simplificações um tanto grosseiras. Isso porque elas são calculadas para funcionar na maior
parte da população, mas podem
ser excessivas ou insuficientes em
diversos casos.
Declaração polêmica
Embora seja de conhecimento
amplo entre cientistas e pesquisadores, essa limitação não era difundida em meio à população,
mesmo de países mais desenvolvidos, até o início de dezembro.
No dia 9 desse mês, ela se tornou pública na forma de uma declaração de enorme repercussão
de Allen Roses, chefe do setor de
genética da gigante farmacêutica
britânica Glaxo Smith Kline. Segundo ele, mais de 90% dos remédios "só funcionam para 30% a
50% das pessoas".
Um dos principais fatores que
influenciam a eficácia dos remédios seria o genético. Variantes
individuais do mesmo trecho de
DNA poderiam fazer com que o
organismo de um doente absorvesse rápido demais ou muito devagar um determinado medicamento, o que exigiria doses maiores ou menores. Em alguns casos,
seria totalmente ineficaz ou mesmo letal dar certo medicamento a
um segmento da população.
O grupo étnico a que uma pessoa pertence teria certo papel nisso, já que os povos do planeta estiveram sujeitos a ambientes e
doenças distintos ao longo dos
milênios -e se adaptaram a eles
por meio de alterações bioquímicas sutis. Um exemplo disso é o
gene ligado à anemia falciforme,
que protege povos africanos e do
Mediterrâneo contra a malária,
mas também os deixa sujeitos a
essa forma de anemia.
Variabilidade complicada
A coisa se torna ainda mais
complicada quando se considera
o histórico de mistura étnica da
população brasileira. "Muitos trabalhos têm mostrado claramente
que no Brasil o fenótipo [a aparência] não representa a herança
genética", diz Marco Aurélio Romano-Silva, psiquiatra da UFMG
(Universidade Federal de Minas
Gerais) e integrante da rede de
farmacogenômica.
Na prática, isso significa que
uma pessoa de pele branca pode
muito bem ter um perfil genético
(e uma resposta a medicamentos
e doenças) mais parecido com o
de pessoas de origem africana ou
indígena. Para Romano-Silva,
uma das maneiras de estimar melhor o perfil genético real de um
paciente seria usar marcadores
como o DNA mitocondrial (só
transmitido pelo lado materno) e
o cromossomo Y (pelo paterno),
que costumam ter associação estreita com os grupos étnicos.
Mesmo assim, algumas surpresas já têm aparecido, como num
trabalho do Inca sobre variantes
do gene CYP2C9, que especifica
uma proteína que ajuda o organismo a metabolizar antiinflamatórios. "Nesse caso, a população
negra brasileira se mostrou mais
parecida geneticamente com a
africana do que com a norte-americana, algo que nos surpreendeu
um pouco, já que lá também teria
havido miscigenação", afirma
Suarez-Kurtz.
Outro trabalho, com a participação de Romano-Silva e de colegas da UFMG e da USP de Ribeirão Preto, mostrou que 9,3% de
202 pacientes brasileiros tinham
versões mutantes do gene TMTP,
envolvido, por exemplo, no metabolismo de medicamentos contra
doenças como leucemia.
O gene pode ter sua função prejudicada (se a pessoa tiver uma
cópia das versões mutantes) ou
totalmente inativada (se ela tiver
duas cópias) -de forma que os
medicamentos passam a ter efeito
tóxico em vez de positivo. "Se você puder verificar isso no paciente, está eliminando esse risco",
afirma Romano-Silva.
Os pesquisadores dos diferentes
grupos que formam a rede já vêm
trocando experiências sobre as
áreas que pesquisam.
Aids
O principal objetivo em comum, delineado em duas reuniões com o MCT (Ministério da
Ciência e Tecnologia), é analisar a
resposta da população brasileira
aos medicamentos anti-retrovirais, principais armas contra a
Aids. "Avaliamos que isso teria
um impacto não só científico,
mas também social e econômico", diz Suarez-Kurtz.
Os projetos sobre o tema foram
apresentados ao ministério e tiveram seus recursos estimados em
cerca de R$ 2 milhões no final do
ano passado. A expectativa dos
pesquisadores é que a reunião dos
grupos de trabalho do MCT, prevista para o final do mês que vem,
dê o sinal verde para a idéia. "Enquanto isso, continuamos trabalhando com nossos financiamentos independentes", afirma Guilherme Suarez-Kurtz.
Próximo Texto: Espaço: Nasa decreta fim prematuro do Hubble ao cancelar manutenção Índice
|