São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002

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Reformas no Hubble e o lançamento de um novo telescópio em 2010 devem dar ao homem uma visão da luz emitida pelas estrelas mais velhas do cosmos

A última milha do Universo

Nasa
Imagem feita pela nova câmera do telescópio Hubble mostra em primeiro plano uma galáxia a 420 milhões de anos-luz da Terra e, ao fundo, centenas de outras galáxias


Salvador Nogueira
da Reportagem Local

Há justiça poética na astronomia. Em 1929, o astrônomo americano Edwin Hubble colocou todos os modelos do Universo que o retratavam como um conjunto estático de estrelas e galáxias na lata do lixo. Suas observações ao telescópio demonstraram que as galáxias estavam se afastando umas das outras a velocidades assustadoras e que, quanto mais distante estava uma galáxia, mais rápido ela se movia. O impacto foi avassalador. A descoberta era a confirmação de que o Universo não estava parado, mas sim em expansão. Rebobinando mentalmente a fita do tempo, os astrônomos imaginaram que o cosmos deveria ter iniciado sua expansão de um ponto central. A teoria levantada alguns anos antes de que o cosmos teria se originado em uma grande explosão inicial parecia agora receber total credibilidade. A constatação de Hubble permitiu estimar a data desse Big Bang primordial, o momento do nascimento do cosmos, entre 13 bilhões e 15 bilhões de anos atrás, e obrigou os defensores da teoria do Universo estático a rever suas idéias. Um deles foi o físico Albert Einstein, que havia inserido na teoria da relatividade uma "constante cosmológica" para compensar a ação da gravidade e manter seu Universo parado. Depois de Hubble, Einstein declarou que a inserção arbitrária da constante em suas equações foi o maior erro de sua vida. Pouco mais de seis décadas depois, a Nasa colocou no espaço o Telescópio Espacial Hubble. Sua missão principal: perscrutar com seu respeitável espelho côncavo de 2,4 metros de diâmetro os mais distantes recantos do Universo, em busca de mais informações sobre a origem e o destino do cosmos. Levado à órbita terrestre em 1990 pelo ônibus espacial Discovery, o telescópio ganhou o apropriado nome do célebre astrônomo americano. Na época, a agência espacial americana passou por um aperto, ao constatar uma imperfeição na superfície do espelho que estava prejudicando o desempenho do equipamento; o Hubble estava míope. Uma missão tripulada do ônibus espacial foi conduzida em 1993, e os astronautas tiveram sucesso ao tentar corrigir a deformidade. O Hubble se tornava a mais extraordinária ferramenta de observação astronômica já criada pelo homem. As imagens produzidas por seus instrumentos encantaram não só os astrônomos, mas todas as pessoas, entusiastas ou não da astronomia, que puderam observar a riqueza estética do cosmos. Agora, após uma das missões regulares de atualização do telescópio espacial, um novo salto está para ser dado. Em março deste ano, a equipe do ônibus espacial Columbia instalou no Hubble um novo instrumento, a ACS (Advanced Camera for Surveys, ou Câmera Avançada para Pesquisas). Projetada por uma equipe da Universidade Johns Hopkins ao longo de sete anos, a ACS promete levar o telescópio à "última milha". "Achamos que esse instrumento será capaz de detectar objetos cuja luz foi emitida em direção à Terra apenas 1 bilhão de anos após o Big Bang", diz Holland Ford, astrônomo que lidera a equipe da nova câmera. "É um salto de 10 a 15 vezes para a capacidade do Hubble", ele afirma, entusiasmado com o potencial do instrumento. "E onde está a tal da justiça poética mencionada logo no início?", pergunta o leitor. Acontece que uma das pesquisas que estão sendo conduzidas pela nova câmera do Hubble pretende definitivamente redimir o erro de Einstein e ressuscitar a "constante cosmológica" -não em sua forma original, como um artifício para manter o Universo estacionado, mas como a representação de uma energia misteriosa que parece estar agindo de forma contrária à gravidade, afastando as galáxias umas das outras e acelerando ainda mais a expansão do Universo. Se o primeiro Hubble derrubou a primeira constante cosmológica, o segundo Hubble promete ressuscitá-la. "Estaremos procurando supernovas com a metade da idade do Universo, na tentativa de confirmar a existência da energia escura", diz Ford.

Faróis estelares
As supernovas, em geral estrelas em seu estágio final de vida que entram em colapso e explodem, servem como faróis interestelares. Quando disparam, tornam-se visíveis mesmo a grandes distâncias, permitindo que sua luz seja estudada. Com base no estudo dessa luz, é possível dizer a que velocidade elas estavam se movendo e, por tabela, em que ritmo o Universo estava se expandindo na ocasião. Comparando a velocidade de estrelas que explodiam há bilhões de anos com a de estrelas mais próximas (cuja luz é, portanto, mais recente), será possível determinar a evolução da expansão do Universo ao longo dos éons e, por consequência, o papel exato da energia escura nesse processo.
Outro grande estudo que será conduzido pelo Hubble logo após a instalação da ACS é o de aglomerados de galáxias, as maiores estruturas de organização do Universo. Com imagens do plano de fundo do cosmos, Ford e seus colegas pretendem esclarecer os mistérios que envolvem esses agrupamentos gigantescos, incluindo nas explicações o papel de outra grande incógnita da astronomia: a matéria escura -uma substância que ninguém pode ver, mas que sabemos estar lá por sua interação gravitacional com corpos visíveis.
O Hubble, entretanto, não serve apenas a pesquisas cosmológicas. Uma das mais importantes buscas atuais, a de planetas extra-solares, também pode ser incrementada pelas atualizações do telescópio espacial. "Alguns acham que isso será possível -observar planetas extra-solares do tamanho de Júpiter em torno de estrelas próximas", afirma Ford. Ele não sabe se a pesquisa dará frutos, mas diz que vale a tentativa. "Há planos de observação do sistema binário de Alfa Centauri -a estrela mais próxima do Sol, a cerca de quatro anos-luz de distância-, na tentativa de vermos algum planeta orbitando uma das estrelas."
Não seria somente um resultado espetacular, mas poderia servir de propulsor para missões espaciais mais ambiciosas. "Se encontrarmos planetas que estão perto o suficiente, um dia iremos para lá, via sondas automáticas", diz. "Pode levar cem anos ou mais até que tenhamos a tecnologia para isso, mas iremos."
Pelas contas atuais, o Hubble terá até 2010 para revolucionar novamente a astronomia. Depois desse ano, a Nasa planeja dar ao telescópio a merecida aposentadoria. Em seu lugar, um equipamento totalmente novo seria enviado ao espaço, trazendo outro espetacular salto qualitativo para a exploração astronômica. É o que atualmente é chamado na agência de Telescópio Espacial de Próxima Geração (NGST, na sigla em inglês). "Nós vamos arrumar um nome melhor, não se preocupe", diz Peter Stockman, responsável pelo escopo científico do projeto. "É que a Nasa não costuma batizar nada em homenagem a alguém até que o lançamento seja bem-sucedido", ele logo explica.
O telescópio, com custo orçado entre US$ 1 bilhão e US$ 1,5 bilhão, teria um espelho de 6,5 metros e ficaria bem mais longe da Terra -em vez de uma órbita baixa (600 km), como o Hubble, ele estaria no segundo ponto de Lagrange, a mais de 1 milhão de km do planeta, onde nenhum ônibus espacial atual pode alcançá-lo.
"Se com o Hubble podemos ver a luz de quando o Universo tinha 1 bilhão de anos, com o NGST poderemos chegar de 200 milhões a 300 milhões de anos depois do Big Bang", diz Stockman. Isso porque, além do espelho maior, o telescópio será mais eficiente para visualizar luz infravermelha, que tem menos energia que a luz do espectro visível, a favorita do Hubble.
Com essas perspectivas, o futuro dos telescópios espaciais parece brilhante. Mas poderiam os novos equipamentos superar os sucessos atingidos quando a humanidade deu a primeira espiada, via Hubble, nas profundezas do cosmos? "É difícil saber, mas o que vemos de novo e de novo é que, sempre que expandimos nossa capacidade de observação, encontramos fenômenos desconhecidos e impressionantes", diz Ford. "Eu quero acreditar que o melhor ainda está por vir."



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