São Paulo, quinta-feira, 19 de dezembro de 2002

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NEUROLOGIA

Pesquisa observa mudança de conexões em cérebro de camundongo modificado para ter células fluorescentes

Grupo enxerga neurônios em transformação

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Duas equipes de pesquisadores puderam enxergar diretamente como o cérebro cria e recria conexões entre células nervosas, mostrando que o órgão tem uma plasticidade respeitável. No futuro, ela poderá auxiliar o tratamento de lesões traumáticas, doenças neurológicas e mentais.
"Diretamente" significa isso mesmo: através de "janelas" transparentes no crânio de camundongos, de vidro ou de osso fino, os cientistas puderam enxergar pela primeira vez em animais vivos, com ajuda de microscópio, a dinâmica da comunicação entre as células nervosas, os neurônios.
O impulso nervoso é uma carga eletroquímica transmitida de neurônio a neurônio graças a substâncias chamadas neurotransmissores. O local onde é feita essa passagem, o espaço vazio entre dois neurônios, é chamado de sinapse. Cada neurônio tem um estoque específico dessas substâncias, para poder se comunicar com seus vizinhos, segundo a função na qual estão integrados.
Os dois estudos estão publicados na edição de hoje da revista "Nature" (www.nature.com), que também editou um terceiro artigo comentando os resultados.
O dia-a-dia mostra que o cérebro tem uma notável capacidade de se adaptar a mudanças no ambiente e de formar memórias, dizem os autores do comentário, Ole Ottersen e Johannes Helm, da Universidade de Oslo, Noruega.
"Mas até que ponto essa maleabilidade do cérebro adulto depende de rearranjos físicos das conexões entre células nervosas?" -perguntam Ottersen e Helm.
É basicamente o mesmo problema da fiação elétrica de uma residência. Até que ponto o que existe suporta o uso que é feito, e até que ponto é preciso refazer circuitos para encarar novas necessidades?
Uma primeira resposta foi agora dada pelos experimentos feitos pelos sete pesquisadores da equipe de Karel Svoboda, do Instituto Médico Howard Hughes, de Cold Spring Harbor, Nova York, e por Wen-Biao Gan, da Escola de Medicina da Universidade de Nova York, e mais dois colegas.
O primeiro passo obter camundongos transgênicos com neurônios fluorescentes, para permitir a visualização de modificações pelas "janelas".
Os cientistas queriam enxergar mudanças em minúsculas protuberâncias das células nervosas conhecidas como "espinhos dendríticos", que agem como receptores dos impulsos nervosos. Mudança ou estabilidade nos espinhos, cujo diâmetro é de cerca de um vigésimo do de um fio de cabelo, são portanto fundamentais na rede de conexões dos neurônios.
"Os espinhos são o local de recepção das sinapses. Se as sinapses mudam rapidamente, então os espinhos não podem ser o local de estabilidade a longo prazo da memória. Se, por outro lado, os espinhos persistem por um longo tempo, as memórias de longo prazo podem estar nos espinhos. Nós descobrimos que alguns espinhos vivem por um longo tempo, enquanto outros vivem muito pouco", declarou à Folha o pesquisador Karel Svoboda.
Essa variação na vida dos espinhos foi a principal diferença entre os estudos. A equipe do cientista Wen-Biao Gan notou uma estabilidade muito maior nos espinhos, 96% deles persistindo durante a vida do camundongo.
Os comentadores Ottersen e Helm acreditam que as diferenças podem ser resultado dos diferentes experimentos feitas pelas duas equipes, que, por exemplo, estudaram áreas diferentes do córtex (a camada externa do cérebro feita de "matéria cinzenta" e ligada a funções como a memória).
A equipe de Svoboda também pôde registrar como os neurônios reagem a mudanças específicas. Os cientistas cortaram alguns dos "bigodes" dos roedores, que são importantes para o animal recolher sensações do ambiente.
Eles notaram que conexões foram criadas e recriadas mais rápido depois do corte dos "bigodes", ou seja, o estímulo ambiental causou mudanças nas sinapses.
O detetive de ficção Sherlock Holmes dizia que o cérebro tem um número limitado de "escaninhos" para acumular memória, por isso ele procurava não entulhar o seu com trivialidades.
"Sherlock Holmes está certo, eu tenho esse terrível hábito de lembrar estatísticas de esportes que são completamente inúteis e me impedem de aprender coisas interessantes, como falar português", disse Svoboda à Folha. "Qualquer sistema físico vai ter uma capacidade de memória limitada", diz.


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