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São Paulo, domingo, 20 de abril de 2003

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EM BUSCA DE TRÓIA

Reprodução
Detalhe de vaso grego mostra o herói Ájax, personagem da Ilíada, carregando o corpo de Aquiles para o acampamento grego



Cientistas conduzem escavações ao redor das ruínas da cidade para descobrir novos indícios históricos da guerra descrita na "Ilíada"


Marcelo Ferroni
free-lance para a Folha

Alguns dizem que a obra não passa de criação literária. Outros, que é possível descobrir traços históricos nessa que é uma das epopéias mais importantes para a formação da literatura ocidental: a "Ilíada", obra em 24 cantos atribuída ao poeta grego Homero, escrita por volta do século 8º a.C. A narrativa, provavelmente posta no papel a partir de uma tradição oral mais antiga, conta o período final do cerco de dez anos que os gregos empreenderam à cidade de Tróia, na Ásia Menor, por volta do século 12 a.C.
A história, que narra a luta de heróis como Aquiles, Agamêmnon e Heitor, tem atraído a atenção de incontáveis especialistas, dos primeiros historiadores gregos, por volta do século 5º a.C., até os arqueólogos atuais. Para eles, é possível garantir que a guerra -que uniu povos de toda a região que viria a ser a Grécia contra habitantes da Ásia Menor- realmente ocorreu.
Esse é o caso de uma equipe de cientistas que conduziu escavações próximas às ruínas de Tróia para descobrir como era o relevo da região no provável período da guerra. O estudo, publicado em fevereiro na revista especializada "Geology" (www.gsajournals.org), é no mínimo curioso. "Nada do que a nossa pesquisa encontrou contraria as descrições da "Ilíada" ", escreve John Kraft, geólogo da Universidade de Delaware, nos Estados Unidos, e principal autor do estudo. O trabalho de Kraft consistiu em fazer dezenas de perfurações na costa noroeste da Turquia, analisar as camadas geológicas do terreno e fazer um mapa de como a região seria por volta de 3.250 anos atrás (veja quadro abaixo). O resultado, indica o cientista, está de acordo com a "Ilíada". Tróia estaria na beira de uma baía. Na outra extremidade, num estreito braço de terra, os gregos teriam montado acampamento. Muitas das guerras descritas teriam ocorrido na planície Escamândria, onde deságuam os rios Escamandro e Simoente. A baía, no entanto, foi coberta ao longo dos séculos, principalmente pela ação de assoreamento na região, causado pelos sedimentos trazidos pelos rios que desaguavam no local. Os pesquisadores, que conduzem escavações desde 1977, fizeram buracos de 70 metros de profundidade e depararam com material que indicava que a região fora coberta por água salgada. Segundo eles, o relevo era "extremamente irregular, com uma série de rios que mudavam seu curso com frequência, pântanos e pequenas lagoas". Na conclusão, os cientistas são cautelosos: "Apesar de os resultados não poderem validar a lenda, nós não encontramos nada no registro estratigráfico que negue os eventos da "Ilíada" ". As descrições na obra de Homero são vagas, o que torna difícil qualquer comparação. A epopéia cita, no sexto canto, "lutas aspérrimas" numa planície, entre a corrente de dois rios, o Escamandro e o Simoente. No 12º canto, há uma nova descrição dos dois rios, "de margens juncadas de escudos e de elmos empoeirados de heróis" -segundo a tradução de Haroldo de Campos (Editora Arx, 2002). "A "Ilíada" pode até ter se baseado em fatos que realmente ocorreram, mas sua preocupação maior era a literária, e não a histórica", diz Elaine Hirata, professora da arqueologia clássica do Museu de Arqueologia e Etnologia, da USP. O episódio poderia não ser o relato de só um conflito, mas de uma série deles, aglutinados e confundidos em uma mesma narrativa. "Os textos dão eco a possíveis conflitos numerosos na região, que podem ter sido mesclados na "Ilíada" ", conta Fábio Hering, doutorando em história antiga da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). "Sabe-se, por exemplo, que os gregos pilhavam as cidades conforme se aproximavam de Tróia. Isso está nas narrativas."


"Apesar de os resultados não poderem validar a lenda, nós não encontramos nada no registro estratigráfico que negue os eventos da "Ilíada" ", apontam os cientistas em seu estudo


À beira do fim
Com base em cálculos de historiadores da Antiguidade, estima-se que a guerra de Tróia -ou as guerras- tenha ocorrido entre 1346 a.C. e 1127 a.C., sendo que a data mais aceita seria a de 1184 a.C. Nessa época, não havia ainda surgido nada do que posteriormente se tornou famoso no mundo grego: as cidades-Estado, a democracia e a tragédia. A região era dominada pela civilização micênica -assim batizada graças à poderosa cidade de Micenas, no sul da Grécia. Seus membros falavam uma forma arcaica da língua grega e conquistaram a sofisticada cultura cretense, que antes dominava o Egeu. Tornaram-se, assim, uma mistura de ricos comerciantes, que levavam vida palaciana, e guerreiros ferozes, cujos elmos de dentes de javali aterrorizavam o Mediterrâneo. Por volta de 1200 a.C., essa civilização poderosa chega ao seu fim. Muitas cidades são incendiadas, outras saqueadas. O poder centralizado perde a sua força. "Há um despovoamento dos grandes centros, além do fim da escrita e da arquitetura monumental", comenta Hirata. "Toda a vida palaciana perde o sentido, o poder se pulveriza." O que se segue é uma época conhecida como idade das trevas. Há uma desagregação total da vida na região. E é justamente no século 8º a.C., época em que surgem a "Ilíada" e a "Odisséia" -narração da volta de Odisseu (Ulisses) a Ítaca após a guerra de Tróia-, que o mundo grego começa a se recompor. "A "Ilíada" conta provavelmente a história dos povos micênicos em uma de suas guerras para saques e fundação de empórios comerciais", diz Hirata. "Ao que tudo indica, eles não queriam estabelecer cidades. Às vezes, agiam como se fossem piratas, saqueando os centros urbanos."

Teorias antigas
As tentativas de explicar as bases históricas por trás da Guerra de Tróia são antigas. Tucídides (460-400 a.C.), um dos maiores historiadores gregos, já buscava explicações para o que ocorrera na época. "Agamêmnon, ao que me parece, devia ser um dos governantes mais poderosos de seu tempo, e foi por essa razão que ergueu um exército enorme contra Tróia", diz ele, no início da "História da Guerra do Peloponeso". Suas especulações se estendem até aos tamanhos dos exércitos envolvidos: "É questionável se podemos confiar totalmente nas estimativas de Homero, porque, já que era um poeta, deve ter exagerado". O assunto ganhou interesse renovado quando o empresário alemão Heinrich Schliemann (1822-1890) iniciou em 1871 as escavações no monte Hissarlik, na Turquia, atrás de ruínas da cidade lendária. "Schliemann tentava usar a arqueologia como um instrumento para validar os textos homéricos, escritos cerca de quatro séculos após os possíveis eventos", afirma Hering. "Com isso, deixou de tomar alguns cuidados ao escavar a região." Na pressa de encontrar indícios que comprovassem o relato, o pesquisador alemão acabou fazendo uma confusão de datas: explorou e descobriu tesouros de uma Tróia mil anos mais antiga que a descrita na "Ilíada". Escavações posteriores apontaram uma outra camada de ruínas, conhecida como Tróia 7, que parece ser a cidade contemporânea aos relatos de Homero. Provavelmente destruída por um incêndio, ela representa um centro urbano pequeno, longe do que aparece nas narrativas.

Novas polêmicas
Não foi só o artigo na revista "Geology" que trouxe o assunto de Tróia à tona. Em outubro passado, uma polêmica entre pesquisadores alemães fazia lembrar os próprios embates entre gregos e troianos.
Coordenador das escavações nas ruínas de Tróia desde 1988, o arqueólogo Manfred Korfmann, da Universidade de Tübingen, participou de uma exposição em que mostrava um centro urbano muito maior e mais importante do que se imagina atualmente. Segundo ele, sua equipe descobriu indícios de uma cidade espalhada ao redor da atual cidadela, o que poderia indicar que Tróia era realmente tão importante quanto a descrição de Homero.
A exposição, chamada "Tróia: Sonho e Realidade", contava inclusive com uma reconstituição tridimensional da cidade, composta a partir dos indícios descobertos por Korfmann. A especulação gerou uma disputa entre ele e Frank Kolb, historiador da mesma universidade. Segundo o jornal norte-americano "The New York Times", Kolb chegou a dizer que seu colega trabalhava com pura fantasia. "Ele é o Von Däniken da arqueologia", disse o professor, referindo-se ao escritor que afirma que astronautas extraterrestres visitaram a Terra em épocas remotas e contribuíram para a formação de civilizações antigas.


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