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São Paulo, domingo, 20 de abril de 2003

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Ciência em Dia

Florestas para inglês ver e americano discutir

Marcelo Leite
editor de Ciência

O Brasil prossegue um país intrigante. Dono da maior extensão de floresta tropical contínua e intacta do mundo, pouco discute o futuro desse tesouro de biodiversidade. E, quando o discute, costuma fazê-lo em inglês.
Por exemplo, na revista norte-americana "Science" (www.sciencemag.org), publicada pela SBPC dos Estados Unidos, a AAAS (Associação Americana para o Avanço da Ciência). Na edição do último dia 21 de março, trouxe duas cartas -assinadas por pesquisadores brasileiros e gringos- que debatem polidamente a questão das Flonas (Florestas Nacionais) brasileiras. A tora da discórdia está na proposta de permitir a exploração comercial da madeira em 500 mil km2 dessas áreas de proteção ambiental.
Salvo engano, o vocábulo "Flona" esteve ausente das seções de cartas da maioria dos jornais e revistas brasileiros nos últimos meses. Provavelmente, é desconhecido pela maioria dos cidadãos do país. Há muitos responsáveis por essa ignorância, a começar dos jornalistas.
As cartas na "Science" provêm de duas instituições similares e, de certa maneira, parceiras em seu foco sobre a Amazônia brasileira. Trata-se de ONGs de pesquisa surgidas em Belém em grande medida sob a liderança de ecólogos americanos: o Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e o Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia).
Em agosto de 2002, Adalberto Veríssimo e colaboradores do Imazon haviam defendido em artigo na mesma "Science" que o Programa Nacional de Florestas (PNF) brasileiro poderia contribuir para diminuir a suscetibilidade da floresta amazônica ao fogo gerada pela exploração madeireira descontrolada. Caso as Flonas previstas no plano admitissem atividade madeireira com práticas sustentáveis e sob a vigilância do Estado, o dano e a consequente inflamabilidade da mata seriam contidos, argumentavam.
Suscetibilidade ao fogo, por outro lado, é uma área de especialidade do Ipam e, em particular, de Daniel Nepstad -que, apesar de americano, tem filhos brasileiros e fala português com sotaque de caboclo paraense. Ele é um dos signatários da carta de março na "Science", que ataca a idéia do Imazon e a qualifica de "otimista" (para não dizer ingênua). Argumento: o governo brasileiro estaria despreparado para assegurar que a exploração comercial de madeira nas Flonas se desse de forma compatível com a saúde da floresta. "De fato, as concessões podem ter consideráveis efeitos colaterais indesejados e negativos, muitos dos quais até agora escaparam de uma discussão séria", escreveram.
Veríssimo e Mark Cochrane (um ex-colaborador de Nepstad) respondem no ato, quer dizer, na mesma página 1.843 da "Science" de 21 de março. Ponderam que o Brasil aprendeu com os erros de outros países nas concessões madeireiras e que o plano para as Flonas está sendo debatido de forma transparente e democrática no país. Mais que isso, a insegurança fundiária -só 24% das terras amazônicas são cobertas por títulos privados- inviabilizaria a disseminação de práticas sustentáveis fora de áreas protegidas como as Flonas.
Os argumentos estão na mesa, ainda que em inglês. Cabe aos brasileiros dizer, em bom português, se planejam tornar o debate merecedor, de fato, dos qualificativos "democrático" e "transparente". Isso não depende apenas dos esforços heróicos de ONGs como Imazon e Ipam.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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