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São Paulo, domingo, 20 de julho de 2003

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+ ciência

O SENHOR DOS ANÉIS

Divulgação JPL/Nasa
Concepção artística mostra a sonda espacial Cassini, da Nasa, entrando em órbita de Saturno, o sexto planeta do Sistema Solar



Missão não-tripulada a Saturno, planeta famoso por seus impressionantes anéis, deve chegar ao sistema no ano que vem, revolucionando a forma como os cientistas vêem esse astro e seus satélites


Salvador Nogueira
da Reportagem Local

Quando Galileu Galilei apontou seu telescópio para Saturno, ficou surpreso ao constatar que o astro, que a olho nu parecia ser um só, na verdade era triplo, com duas grandes esferas quase coladas a um globo central. "Para minha grande surpresa, Saturno apareceu para mim não como uma única estrela, mas três juntas, quase se tocando umas às outras", escreveu o famoso cientista italiano, sobre as observações que fez entre 1609 e 1610. Dois anos depois, ele voltou a observar o planeta e se chocou, ao descobrir que os dois corpos menores haviam sumido. "Não sei o que dizer de um caso tão surpreendente", relatou. Desde aquela época, o sexto planeta do Sistema Solar já se apresentava um mistério formidável aos astrônomos.
O enigma das observações de Galileu levou 50 anos para ser decifrado, e só o foi quando o cientista holandês Christiaan Huygens, equipado com tecnologia de observação superior, confirmou que os astros secundários vistos pelo italiano eram na verdade um anel fino e plano, posicionado ao redor do planeta -que até hoje se mantém como a marca registrada do objeto. Apesar desse sucesso inicial, ainda há muito mais incógnitas do que respostas a respeito do intrigante sistema composto por Saturno e suas luas. Felizmente, essa condição de ignorância está prestes a mudar.
Os cientistas planetários andam correndo como loucos nos últimos tempos, tentando antecipar e descobrir tudo o que for permitido com observatórios terrestres e com o telescópio espacial Hubble. Afinal, a partir de 2004, eles enfrentarão concorrência desleal. Após sete longos anos de viagem, a sonda espacial Cassini está prestes a entrar na região de Saturno e iniciar uma missão científica de quatro anos na redondezas do astro, proporcionando uma revolução sem precedentes no que se conhece a respeito do verdadeiro "Senhor dos Anéis" e seus satélites, entre os quais está um que mais lembra um planeta, com dimensões avantajadas e densa atmosfera: Titã.
"Muitos de nós, inclusive eu mesma, estamos trabalhando furiosamente para que estejamos prontos quando a Cassini chegar a Titã", afirma Caitlin Ann Griffith, pesquisadora da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, que se especializou, ao longo dos últimos anos, no estudo do satélite que pode guardar muitas das respostas acerca de uma questão que aflige a biologia: como surgiu a vida na Terra?

Inspiração antiga
Há tempos Titã, com uma densa atmosfera de metano e nitrogênio que impede totalmente a visualização da superfície, tem servido à imaginação de cientistas e escritores. No livro original de Arthur Clarke, "2001: Uma Odisséia no Espaço" (1968), a nave Discovery estava a caminho de Saturno e de Titã. No filme, feito paralelamente com roteiro de Clarke em parceria com Stanley Kubrick, Saturno e Titã foram trocados por Júpiter e Europa, dupla mantida depois nas continuações da história, em livro e em película. Apesar da troca, Titã ainda é prestigiada para os cientistas que procuram formas de vida fora da Terra. Não que eles esperem encontrar vida lá. "Infelizmente em Titã a água é um pedregulho congelado, portanto não é um bom solvente para que o material orgânico se "socialize" e acabe formando as grandes moléculas que são as precursoras da vida. A temperatura na superfície de Titã é de 94 K [-179C]", diz Griffith. "Ainda assim, é interessante descobrir como a química orgânica se desenvolve em ambientes contendo metano e nitrogênio -a Terra não teve oxigênio livre em tempos antigos. Uma hipótese para a Terra primeva é a de que sua atmosfera continha montes de metano e nitrogênio, como Titã." Alguns cientistas acham até que Titã, com seus 5.150 quilômetros de diâmetro (maior que os planetas Mercúrio e Plutão), é mais parecido com a Terra primitiva do que a própria Terra atual, o que faz da lua um local importantíssimo para estudos de formação das reações químicas precursoras da vida. Como a densa névoa que recobre o astro torna impossível o estudo detalhado da superfície, experimentos em laboratório são um belo jeito de entender a dinâmica do objeto. (Griffith e alguns colegas até conseguiram recentemente dar uma espiada por "janelas" do espectro eletromagnético -frequências de luz que a atmosfera da lua não barra e permite que cheguem à Terra-, mas não obtiveram nada tão detalhado quanto os mapeamentos de Marte e da Lua feitos até com telescópios terrestres modestos.) Um par de décadas atrás, os cientistas planetários Carl Sagan e Bishum Khare simularam a produção da névoa orgânica que recobre Titã num pote. O nevoeiro do satélite é formado pela quebra de metano na atmosfera pela ação de raios ultravioleta do Sol. "Para provar isso, Carl e Bishum colocaram no pote os dois principais gases de Titã e dispararam uma carga elétrica neles. Um sedimento se formou nas paredes do jarro que tem a mesma cor da névoa de Titã, laranja", afirma Griffith. Embora essa seja uma demonstração eloquente de um processo que ocorre a mais de 1 bilhão de quilômetros daqui, seria melhor ir até lá e verificá-lo "ao vivo". É esse tipo de lampejo que a Cassini deve fornecer. Quem se acostumou com o recente modelo de missões não-tripuladas da Nasa, cujo slogan é justamente "faster, better, cheaper" (mais rápido, melhor, mais barato), vai se chocar com a Cassini. Foram gastos no projeto nada menos que US$ 3,3 bilhões, por uma única sonda. Para efeito de contraste, vale lembrar que a exploração marciana anda num ritmo bem mais econômico, e a agência espacial americana investe em média, nas últimas missões, de US$ 300 milhões a US$ 500 milhões por nave. Também não se pode comparar o desafio logístico de enviar um aparelho ao vizinho Marte e o transporte até Saturno, cerca de dez vezes mais distante. Para começar, não há combustível que chegue para levar a nave até lá; é preciso usar o impulso gravitacional oferecido por outros corpos celestes mais próximos (o chamado "efeito estilingue") para arremessar a nave ao seu destino. A Cassini, por exemplo, teve de passar de raspão pela Terra, por Vênus (duas vezes) e por Júpiter antes de entrar na rota para Saturno. O nome da sonda veio do astrônomo ítalo-francês Jean Dominique Cassini, que em 1675 descobriu que o anel de Saturno era dividido em duas grandes faixas, separadas por um vão, conhecido desde então como a divisão de Cassini. O cientista também descobriu vários dos satélites do planeta, que até hoje ainda têm contagem incerta. Quando a Cassini foi lançada, em 1997, a comunidade científica conhecia 18 luas de Saturno. Durante a enfadonha viagem, o número quase dobrou. A contagem atualmente está em 31 satélites, mas a maioria deles é composta por pedregulhos mais parecidos com asteróides do que com luas esféricas.

Jornadas anteriores
Não será a primeira visita de uma sonda não-tripulada ao planeta. Em 1979, a Pioneer-11 passou por lá antes de ser atirada para fora do Sistema Solar. A mesma coisa aconteceu com a Voyager-1, em 1980. No caso da Voyager-2, em 1981, o impulso gravitacional da aproximação com Saturno colocou a sonda na direção de Urano, o próximo planeta na lista dos nove pertencentes ao Sol. Apesar de terem fornecido dados e imagens espetaculares de Saturno e suas luas, inclusive mostrando a composição dos anéis do planeta (sete faixas mais definidas, com satélites na mesma região, contendo as partículas das regiões mais externas dos anéis -rocha e poeira cuja escala varia da de um grão de areia à de um automóvel), as missões foram todas de sobrevôo. Em algumas horas, coletam tantas imagens quanto possível e depois está tudo acabado. No caso da Cassini, será diferente. A pesada sonda, com seus quase sete metros de comprimento por quatro de largura, deve atingir o sistema de Saturno em 1º de julho de 2004. Ela entrará em órbita do planeta e ficará por quatro anos estudando alguns enigmas hoje sem resposta clara. Por exemplo, por que Saturno tem um campo magnético tão intenso? Ou o que leva o planeta a girar tão rapidamente em torno de si mesmo (ele completa um dia a cada dez horas, embora tenha 120 mil quilômetros de diâmetro, dez vezes mais que a Terra), a ponto de ser o planeta mais achatado do Sistema Solar? Qual é o clima que se esconde sob o tom alaranjado aparentemente calmo do topo das nuvens? Por que há diferentes proporções de hélio e hidrogênio lá e em Júpiter, seu parente mais próximo? Todas essas são perguntas que podem não despertar o interesse de qualquer um, mas os cientistas sabem que serão elementos cruciais no entendimento da arquitetura do Sistema Solar, o que por sua vez ajuda a especular sobre o quão raros são planetas como os daqui no Universo. Henri Throop, da Universidade do Colorado em Boulder, por exemplo, é um dos membros da equipe do instrumento ISS (subsistema de imagens científicas, na sigla em inglês), que contém as câmeras da Cassini. Mas um de seus estudos mais recentes fala de algo que aparentemente nada tem a ver com Saturno: a possibilidade de formação de planetas em regiões muito ativas na formação de estrelas, berçários estelares como a nebulosa de Órion. "Minha especialidade é anéis planetários: quão velhos eles são, qual é sua composição, que processos estão acontecendo neles e assim por diante. Eu entrei nesse trabalho do Hubble porque os discos em Órion e os discos em Saturno pareciam semelhantes. Acabou que eles não são similares, mas essa era a idéia original." Com a chegada da Cassini ao sexto planeta, o trabalho de Throop deve voltar as raízes.

Pouso distante
A revolução que a sonda a Saturno deve proporcionar deve ser semelhante à que a Galileo executou em Júpiter, revelando em detalhes, além do gigante gasoso, alguns dos mundos que orbitam o maior planeta do Sistema Solar. Mas a Cassini promete ter um adicional -ela deve executar o primeiro pouso de uma nave espacial num satélite natural que não seja a Lua. Acoplada à sonda da Nasa viaja a Huygens, pequena nave em formato de disco construída pela ESA (agência espacial européia) que deve se desprender do veículo principal e realizar uma aterrissagem em Titã, enviando as primeiras imagens da superfície daquele objeto que, acredita-se, possui oceanos de metano e plataformas de gelo congelado na superfície. A luz do Sol que atravessa a atmosfera do satélite e atinge o solo é 0,1% da que vemos na Terra -deve ser um bocado escuro por lá.
"A sonda Huygens vai ajudar a esclarecer o tempo de Titã -ventos, umidade, temperatura, características das nuvens. Estamos interessados em entender a dinâmica energética do tempo e como ela se compara à do tempo na Terra", diz Griffith. "A Huygens também está equipada com instrumentos para determinar a composição do material em que irá pousar. O que vamos descobrir depende basicamente de onde pousarmos."


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