São Paulo, quarta-feira, 20 de novembro de 2002

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PALEONTOLOGIA

Estudo sugere que espécies no Brasil e na Alemanha são sinônimas

Dino nacional pode ser duplicata

CLAUDIO ANGELO
EDITOR-ASSISTENTE DE CIÊNCIA

A ponta perdida do focinho de um crânio de dinossauro quebrado e contrabandeado do Brasil para a Alemanha pode ter sido descrita como uma espécie diferente por cientistas brasileiros.
A sugestão foi feita por pesquisadores da Europa e do Canadá na última edição do "Journal of Vertebrate Paleontology" (www.vertpaleo.org/jvp), uma das revistas mais conceituadas da área de paleontologia (estudo de fósseis), e ameaça riscar do mapa um dos poucos dinossauros descobertos e batizados no Brasil, o Angaturama limai.
Segundo os europeus, o fóssil do Angaturama, um carnívoro aparentado com o espinossauro (o vilão do filme "Jurassic Park 3"), provavelmente é a mesma espécie ou parte do mesmo espécime do Irritator challengeri, outro carnívoro da mesma família, que saiu ilegalmente do país e hoje está depositado no Museu de História Natural de Stuttgart (sudoeste da Alemanha).
Se eles estiverem certos, o Angaturama passará a ser considerado um sinônimo e não terá mais validade científica. Isso porque o Irritator teve sua descrição publicada numa revista científica um mês antes da descrição do réptil brasileiro, ambas em 1996.
"Como dizemos no Reino Unido, quem chega primeiro se serve primeiro. É uma grande corrida pela prioridade", disse à Folha o paleontólogo David Martill, da Universidade de Portsmouth, que batizou o Irritator e assina o estudo no "Journal of Vertebrate Paleontology" com dois alemães e uma canadense.
O problema é que vai ser difícil obter uma prova final. Os dois fósseis só foram comparados por meio de fotografias e, ao mesmo tempo em que apresentam semelhanças aparentes, têm também diferenças.
"Essa hipótese [a de se tratar de partes do mesmo indivíduo] foi descartada por mim em 1996 no segundo trabalho que publiquei [sobre o Angaturama]", afirma Alexander Kellner, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, que descreveu o A. limai em colaboração com Diógenes de Almeida Campos, do DNPM (Departamento Nacional da Produção Mineral).
Segundo Kellner, a única comparação que ele pôde fazer entre os dois fósseis teria mostrado que o que sobrou do crânio do A. limai -basicamente a ponta do focinho- é mais estreito e mais alto que o I. challengeri. "Mas apenas com um material mais completo poderemos ter certeza."
Apesar da incerteza, as coincidências são impressionantes. Ambos os animais saíram da formação Santana, um grupo de rochas sedimentares da chapada do Araripe, no sul do Ceará. Fósseis de dinossauro nessa região são uma raridade -só um foi oficialmente descrito além do Irritator e do Angaturama até hoje. Ambos têm a mesma idade, cerca de 110 milhões de anos. Segundo Martill, os dentes dos dois bichos são iguais. E um espécime termina onde o outro começa.
"Ambos parecem se encaixar, como se tivessem um dia sido um só crânio. Um pesquisador me assegurou que as partes não se encaixam como um espécime, mas minhas dúvidas permanecem", disse o paleontólogo Paul Sereno, da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, especialista em espinossaurídeos.
"Esses problemas acontecem quando espécimes são coletados por amadores. Eles às vezes quebram os espécimes e vendem partes separadamente", afirmou.

Irritação
Foi o que aconteceu com o Irritator. O crânio teve o focinho quebrado. Depois, traficantes do Araripe fizeram um molde de gesso para forjar a ponta e o colaram ao resto. A fraude foi descoberta por uma tomografia, o que deixou Martill e seus colegas irritados -daí o nome.
Ninguém sabe quem contrabandeou o I. challengeri para a Alemanha, nem quando. O mais provável é que ele tenha sido comprado pelo museu de Stuttgart de um europeu, já que a atividade é legal na Alemanha.
"Talvez o governo brasileiro devesse pedir sua repatriação -eu a apoiaria", afirma o britânico.
A origem do A. limai também é um mistério. Kellner diz que o fóssil foi doado por Murilo Rodolfo de Lima, paleontólogo da USP morto nos anos 90 -e homenageado no nome do animal. Como Lima o obteve, não se sabe.
Outra coincidência é a data de publicação dos dois achados. Martill diz que Arthur Cruickshank, da Universidade de Leicester, que preparou o Irritator challengeri, recebeu um fax do brasileiro perguntando se ele estava trabalhando em algo semelhante.
"Não sabia na época se algum trabalho tinha sido submetido sobre esse ou qualquer outro dinossauro do Brasil", refuta o paleontólogo do Museu Nacional.
Mesmo tendo vencido a corrida da publicação, Martill e colegas se atrapalharam com a classificação do animal. Em seu trabalho de 1996, afirmaram que o Irritator era parente de carnívoros menores, como o velociraptor -o novo estudo corrige esse erro. Kellner descreveu o Angaturama como espinossaurídeo. "Fico feliz em saber que, do ponto de vista científico, eu estava correto."


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