São Paulo, quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

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Homem ocupou o Piauí há 58 mil anos

Nova análise mostra que controversos artefatos da Pedra Furada foram feitos por humanos, silenciando os críticos

Arqueóloga Niède Guidon, que escavou o sítio, vinha sendo criticada por colegas; achado recua ocupação da América em 30 milênios

CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL

A arqueóloga Niède Guidon riu por último. Evidências apresentadas ontem indicam que as ferramentas de pedra descobertas pela pesquisadora no Boqueirão da Pedra Furada, em São Raimundo Nonato, foram mesmo feitas por seres humanos, e têm entre 33 mil e 58 mil anos de idade. São, portanto, a evidência mais antiga da ocupação da América.
Durante mais de duas décadas Guidon, paulista de origem francesa, foi ridicularizada por seus colegas por propor uma idade tão antiga para os instrumentos. Mas uma análise das ferramentas da Pedra Furada apresentada ontem por Eric Boeda, da Universidade de Paris, e Emílio Fogaça, da Universidade Católoca de Goiás, silenciaram os críticos.
"Do meu ponto de vista, esta é uma evidência incontestável de que os artefatos foram feitos por humanos", disse à Folha o arqueólogo Walter Neves, da USP, até então principal adversário intelectual de Guidon. "Ela merece esses louros", disse, referindo-se à colega.
Os artefatos têm causado controvérsia desde a sua descoberta, em 1978. Eles foram achados juntamente com supostas fogueiras no abrigo, cujo carvão foi datado em até 50 mil anos. Uma datação realizada depois na Austrália recuou a idade ainda mais: 58 mil anos.
O problema era que, naquela época, as evidências apontavam que a presença humana tinha no máximo 15 mil anos no continente. A arqueologia era dominada pelo chamado paradigma "Clovis first", segundo o qual os ancestrais dos índios chegaram recentemente, por uma ponte terrestre aberta entre a Sibéria e o Alasca na última glaciação.

Pedras rolantes
O paradigma Clovis First seria derrubado mais tarde, mas os arqueólogos sempre se recusaram a aceitar as datas de Guidon. As fogueiras, argumentavam, poderiam muito bem ter sido produto de combustão espontânea e não havia ossos de animais ou humanos no local. "O que acontecia até agora também é que alguns colegas americanos diziam que os objetos [achados no Piauí] eram apenas pedras que tinham rolado e se quebrado naturalmente", diz Niède. "Mas agora não há a menor dúvida de que foram feitos por seres humanos. O consenso geral é que agora existe um fato."
Essa impressão já havia começado a mudar quando, nos anos 1990, o arqueólogo americano Tom Dillehay, da Universidade do Kentucky, viu os instrumentos e reconheceu que alguns deles pareciam feitos por seres humanos.

Cadeia operatória
O estudo de Boeda não parece deixar mais dúvidas. O francês é considerado um dos maiores especialistas do mundo em tecnologia lítica (de pedra) pré-histórica. Ele desvendou a chamada cadeia operatória dos artefatos, ou seja, a seqüência de lascamento do material, e descobriu que aquilo foi, de fato, produzido por humanos.
"O que se está discutindo agora é como esses homens chegaram aqui", diz Guidon, que não reconhece como uma certeza a chegada do homem às Américas pelo estreito de Bering no Alasca. "Na realidade o caminho por Bering e pelas Ilhas Aleutas é muito mais longo e difícil do que vir pela África mais diretamente."


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