São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 2007

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+ Marcelo Leite

Chuvas, deslizes, crateras


O clima e os brasileiros serão menos amigos, simplesmente


Apesar de risível, engenheiros não ruborizam ao apontar um excesso de chuvas como causa dos desastres da barragem rompida em Miraí (Minas Gerais) e da cratera aberta na obra da linha 4 do metrô de São Paulo. Mais rápido que a terra encharcada, deslizam da arrogância técnica sobre o domínio da natureza para uma estudada impotência diante dela. Pior: o futuro, parece, multiplicará eventos que supostamente lhes dariam razão.
Com o aquecimento global, algumas regiões da Terra terão seus índices de precipitação aumentados, e outras, diminuídos. Mudarão os padrões climáticos em escala mundial, tornando difícil prever os efeitos regionais e locais. Uma coisa, no entanto, é dada por certa: mesmo onde não houver aumento de precipitação, ou até diminuição do total anual, as chuvas serão mais intensas, individualmente.
Como qualquer brasileiro sabe, em particular os que vivem na região Sudeste, os deslizamentos de terra acontecem sempre no verão. São efeitos das chuvas torrenciais características da estação, que sobrecarregam o solo com dezenas de litros de água por metro quadrado em períodos curtos, de algumas horas. Os engenheiros têm noção disso, entre as muitas coisas que aparentam saber em condições normais de temperatura e pressão.
Temperatura e pressão, aliás, são os vilões do clima no verão, mas em sentido literal. O aumento do calor nessa época favorece a evaporação e a formação de nuvens de tempestade, que despejam cargas elétricas e de água no final da tarde. A repetição do fenômeno já se incorporou ao saber tácito de paulistanos, especialmente habituados aos congestionamentos pluviométricos de trânsito.
Não é preciso ser especialista em clima para prever o que deve acontecer com mais calor disponível na atmosfera. Com o agravamento do efeito estufa causado pela queima de combustíveis fósseis e pela conseqüente emissão de gases como o dióxido de carbono, que engrossam o "cobertor" da Terra, haverá mais vapor d'água na atmosfera e mais energia disponível para alimentar tempestades como as chuvas de verão imortalizadas na canção de Fernando Lobo pela voz de Caetano Veloso.
O clima e os brasileiros serão menos amigos, simplesmente. Como já se comprovou com os indianos, aponta o climatologista Carlos Nobre, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais): em 1º de dezembro, um estudo publicado no periódico "Science" mostrou que as chuvas de monção estão se tornando cada vez mais violentas desde 1950. Isso apesar de o total precipitado não ter sofrido modificação perceptível. No Brasil ainda há poucos dados para detectar ou prever com precisão detalhes de uma alteração desse tipo, mas ela virá. A temperatura média no país já se elevou coisa de 0,7C em meio século. Há, portanto, mais combustível atmosférico para produzir trombas d'água como a que arrombou a barreira da Mineração Rio Pomba-Cataguases em Miraí.
Esse estado de coisas só tende a se agravar. Simulações do Inpe para o clima futuro no país, com o aquecimento adicional de 3C previsto para este século na média global, indicam tanto um ligeiro aumento de precipitação no Sudeste quanto maior intensidade de chuvas isoladas. Ou seja, temporais mais freqüentes. O resumo da ópera climática é que engenheiros precisarão recalibrar os cálculos sobre o máximo de chuvas que suas obras podem suportar. Se não preferirem endurecer a cara-de-pau, claro está.
MARCELO LEITE é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático "Pantanal, Mosaico das Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


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